sábado, 5 de novembro de 2011

Por que, no Brasil, os direitos humanos não ouvem os militares?





De paletó, o ex-major Thaumaturgo Sotero Vaz, atualmente general. 
Um dos chefes na Base de Xambioá



Por que, no Brasil, os direitos humanos não

 ouvem os militares?


Myrian Luiz Alves


“À Pátria tudo se deve dar, nada pedir, nem mesmo compreensão.”
(Tenente Siqueira Campos)



Numa rápida retrospectiva, todas as informações relevantes relacionadas à Guerrilha do Araguaia - relatórios, fotografias, entrevistas com fontes militares, entre outras - foram socializadas via imprensa e obras de pesquisadores, a maioria, jornalistas. Divulgou-se nomes de oficiais, com período de atuação e função.

Tem sido assim desde 24 de setembro de1972, quando o Estado de S.Paulo publicou matéria sobre as operações anti-guerrilha em curso, no então estado de Goiás, em Xambioá, e sudeste do Pará. Na reportagem, alguns nomes de guerrilheiros como Paulo e Dina (Paulo Mendes Rodrigues e Dinalva Conceição Oliveira Teixeira) já eram citados, bem como o nome do general responsável, Antonio Bandeira.

No final dos anos 70, o Jornal da Tarde publicou uma série de reportagens sobre o Araguaia. O ex-militante comunista, José Genoíno, concedeu, para uma revista, da Editora Alfa Ômega, entrevista detalhando sua experiência. Sobreviventes aprisionados voltavam, naquele período, à militância, exemplo de Genoíno, Dower Moraes Cavalcante e Glênio Sá. Outros seguiram outros caminhos, amargando a exclusão política por terem sobrevivido. 

É importante lembrar que não morreram somente guerrilheiros. Pereceram moradores e, segundo o ex-major Sebastião Curió, 16 militares, entre eles um soldado de 19 anos, de Minas Gerais, que se enforcou numa corda, quando servia na base militar do Caiano, ex-posse de Paulo Mendes Rodrigues, quando comandante do Destacamento C, em São Geraldo (PA). 

O primeiro componente das Forças Guerrilheiras a ser preso, na Transamazônica, foi Danilo Carneiro, do Dst A, em 14 de abril de 1972. Sua tortura começou ali mesmo e continuaria por longo tempo em Brasília. Danilo é um dos sobreviventes. Na petição da Corte Internacional, o mais barbarizado dos guerrilheiros é citado como testemunha das "vítimas", um rol gigantesco de familiares.



                           

Cabo Odílio Cruz Rosa, de Belém,
primeiro a tombar no conflito, em 8 de maio de 1972




Em 1993, fonte anônima entrega a deputados de uma comissão externa da Câmara, o relatório da Operação Papagaio (setembro-outubro de 1972), com lista de militares e até os lugares onde se sentaram no avião da FAB. Esse relatório não seria divulgado na época.

Em 1996, a filha do general Bandeira, Marcia Bandeira, com o pai ainda vivo, entrega uma série de documentos ao jornal O Globo, que publica um dossiê, em várias edições do jornal,  sobre o tema, no qual inclui fotografias de prisioneiros e mortos, a exemplo de Kleber Lemos, Carlito, fotografado ainda com a bússula pendurada ao pescoço.

De lá para cá, muitos livros, reportagens e artigos são publicados. A entrevista abaixo mostra como o general Taumaturgo Sotero Vaz trata o assunto: além de revelar sua opinião sobre o conflito, revela e denuncia fatos contundentes.

Durante as pesquisas do Grupo de Trabalho Tocantins, em 2009 e 2010, Hugo Stuart e eu entregamos uma lista de militares, incluindo oficiais como o general Thaumaturgo, para serem procurados pelo grupo e, quem sabe, colaborarem com informações que revelassem destinos de guerrilheiros e também de militares mortos na guerrilha.

O general, segundo informou a coordenação do grupo, aceitou a entrevista, ainda não realizada. Nossa intenção era a de abreviar o tempo gasto em buscas que, entendíamos, poderiam não chegar a lugar algum e os gastos do dinheiro público no cumprimento da sentença da Justiça Federal.

Agora, o que se vê, é exatamente o contrário. E, ainda, pelo que sabemos, utilizam, em meio ao grupo, agora intitulado Grupo de Trabalho Araguaia, a tentativa de desqualificação de pessoas cujo objetivo é colaborar com a história do país, direito inalienável de qualquer cidadão. 

Assim tem sido em relação a outros temas, como as denúncias de corrupção: tenta-se, lavando os cérebros já fanatizados, desqualificar e provocar o ódio contra jornalistas e veículos de comunicação.

Todos os que acompanham a redemocratização sabem que os militantes de esquerda, em sua maioria, não queriam ser chamados de revanchistas. Queriam prosseguir na vida pública, lembrando seus companheiros e buscando aplicar, quando se chegasse ao poder, as ideias para uma nação mais justa. Hoje, força-se um revanchismo fora de hora, num momento em que a falta de caráter e o comportamento criminoso de pessoas do seio da esquerda são revelados.

Ao meu ver, usa-se a história dos que combateram, com sinceridade, a linha-dura para mascarar a realidade que nos assola: a esquerda está em crise, crise ética e moral. É por dentro dela que deveria se dar o verdadeiro combate. O resto é tinta.




Entrevista com Thaumaturgo Sotero Vaz

Jornal do Norte - 7 de maio de 1996
Especial Araguaia - Miriam Malina



O general Thaumaturgo Sotero Vaz, 63 anos, vestiu o pijama há quatro anos e é uma das figuras mais polêmicas do Exército brasileiro - comandante do Destacamento das Forças Especiais (boinas pretas), no Rio de Janeiro; comandante do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), em Manaus; chefe do Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia (CMA). E, a Serviço dos EUA, instrutor anti-guerrilha por toda a América Latina.

Thaumaturgo diz que foi combater os guerrilheiros do PCdoB no Araguaia somente em 1972. Essa afirmação é nebulosa, porque outros militares falam que o então Major Vaz teria retornado à região em 1975, o período mais sangrento. Ele nega. Nesta entrevista exclusiva ao JN, o general conta o suficiente para trazer à luz algumas informações no mínimo polêmicas. Ele diz, por exemplo, que o atual deputado federal e ex-guerrilheiro José Genoíno "dedurou" seus companheiros. Confira.

N - Quando o senhor foi para o Araguaia?

Vaz - Em abril de 1972. Fui chamado para preparar outros destacamentos operacionais. Os guerrilheiros Oswaldão e Fogoió emboscaram um cabo na localidade de Couro Dantas e eu teria que resgatar o corpo.

JN - Resgatar o corpo de um cabo é missão para comandante dos boinas pretas?

Vaz - O guerrilheiro Oswaldão espalhou a informação de que quem entrasse na selva para apanhar o corpo do cabo seria dizimado por outros 100 guerrilheiros. Saí do Rio com 36 homens, menos de um pelotão.

JN - O senhor, então, fez parte da primeira expedição militar?

Vaz - Não é bem a primeira, porque na área já estavam fazendo operações militares. A 8ª região Militar conduzia há um certo tempo atividades de reconhecimento e informações, codificadas com o nome de Operação Peixe. O general Rodrigo Otávio, comandante militar da Amazônia, realizou uma grande manobra em 70, para impedir a arrancada da força guerrilheira.

JN - Qual o calibre operacional e moral dos seus homens?

Vaz - As minhas equipes eram de gente muita cara, especializadíssima. Demos as instruções para as tropas do 1º e 2º Bis montarem uma difícil Operação Andorinhas, que foi um grande cerco aos guerrilheiros do PCdoB. O saldo foi positivo, porque destruiu vários campos de treinamento dos guerrilheiros, pistas de combate e pontos clandestinos de suprimento.

JN - Como a população local se relacionava com os guerrilheiros?

Vaz - Eles tinham grande simpatia pelos guerrilheiros, que participavam das atividades da comunidade com eficiência, principalmente, nas áreas da educação, saúde, agricultura e pecuária, com padrões morais inigualáveis. Inicialmente, os guerrilheiros não pensavam em sair para a luta direta. Só > quando se iniciou a intervenção militar é que começaram a fazer proselitismo armado.

JN - Era fácil pegar guerrilheiro?

Vaz - Eu preparei as Operações Couro Dantas e Andorinhas, mas durante 15 dias de patrulhamento não consegui encontrar, mesmo patrulhando 24 horas uma área de mais de 100 quilômetros quadrados, uma palha sequer.

JN - E a moral dos seus soldados?

Vaz - A formação que o Exército dá até hoje aos oficiais e sargentos chega a ser ingênua. Só fala de virtudes e qualidades, como bravura, disciplina, honestidade, mas há deficiências sérias de caráter e formação no combatente de selva. Tive que afastar pára-quedistas e operadores das forças especiais porque eram demasiadamente violentos e indisciplinados.

JN - Quais os seus melhores embates anti-guerrilha?

Vaz - O melhor deles foi quando um mateiro que comprava gêneros para os guerrilheiros pediu dinheiro do Exército e se ofereceu para guiar um destacamento até a base de Caiano. Os guerrilheiros mandaram bala e dois dos meus homens caíram feridos. Peguei um helicóptero e fui resgatá-los, mas tive que trazer o corpo do guerrilheiro Bergson Gurjão Farias, também chamado Jorge e Ciro.

JN - Algum momento lhe paralisou no Araguaia?

Vaz - Eu fiquei besta quando vi os campos de treinamento dos guerrilheiros. As pistas de aplicação ficavam na subida das colinas, o que exigia um grande preparo físico, resistência e determinação. Os obstáculos ultrapassados eram idênticos aos do Centro de Instruções de Guerra na Selva, em Manaus. As bases guerrilheiras tinham sistemas sutis de alarme, com varetas, armadilhas, estacas pás e stands de tiro. Os guerrilheiros chegaram a fabricar uma submetralhadora semelhante a Uru do exército brasileiro. Tinham FAL, que o Lamarca expropriou do quartel de Quitaúna, mas também armamentos rústicos, fuzis 1908 e mosquetões. Coisas de idealistas determinados, pica-pau de rolha brigando contra canhão.

JN - Como o senhor via os guerrilheiros?

Vaz - Não posso subestimar o valor daquele pessoal e desrespeitar a memória deles. Eram inimigos. Podiam ter me metido uma bala na cabeça. Azar, é contingência da guerra. Mas eles eram determinados, corajosos, idealistas, puros.

JN - Porque as Forças Armadas esconderam essa guerra?

Vaz - Eu não sei.

JN - Devido as atrocidades que ocorreram?

Vaz - Deve ter sido.

JN - Esconderam, porque muitos estavam com os corpos dilacerados?

Vaz - É possível.

JN - Mas o senhor era comandante de uma tropa de elite militar conhecida como das mais ferozes...

Vaz - É verdade.

JN - Assassina...

Vaz - Pára aí... Minha tropa tinha moral, ética, tranqüilidade e flexibilidade psíquica. Ninguém matava por matar. Se usassem a arma fora de combate para matar alguém, eu considerava um assassino comum.

JN - Qual a diferença das forças especiais para o resto das tropas?

Vaz - É o treinamento. Uma das máximas que usamos no treinamento é: "o suor poupa o sangue". Se eu estou em combate, o cara está lá, eu dei a voz de prisão e ele atirou em mim, ele vai tomar uma mecha (tiro) direto.

JN - E o peso da tortura?

Vaz - Tem que aproveitar o momento psicológico da prisão. Nesse momento, se não for arrancada a informação, se o cara não abrir a boca, ele não vai falar nunca. A tortura só faz falar as pessoas fracas, porque o cara pode inventar para se livrar. E na selva, ele inventa também.

JN - Como vocês tiravam informação dos guerrilheiros?

Vaz - Genoíno, gosto muito dele, mas quando ameaçaram, ele saiu indicando campo aqui, campo de treinamento ali, posto de suprimento acolá, dedurando. Mas viveu. Quando eu vi ele lá, perguntei: "o que esse cara está fazendo aqui. Porque esse cara já não foi para Brasília? Mandem esse cara embora. Ele já deu toda a informação que tinha que dar". E mandaram ele para Brasília.

JN - Qual foi o guerrilheiro que o senhor encontrou cara a cara?

Vaz - Foi uma mocinha. Ela está viva até hoje... Ela ficou lá. Não me lembro o nome... será que era a Petit? Não, não era nâo... Era uma das Dinas... não era a bunduda não, era uma fraquinha. Só estive com ela e o Genoíno.

JN - Como a Rádio Tirana confundiu a cabeça dos militares?

Vaz - As transmissões da Rádio Tirana deixavam todo mundo maluco. O que me surpreendia é que a rádio dava todo o movimento do dia. Dizem que dentro das unidades militares no Araguaia haviam informantes dos guerrilheiros. Nem tudo era controlado por nós. Podia ser um cara infiltrado no Exército, Marinha e Aeronáutica.

JN - Haviam contradições e brigas entre os militares no Araguaia?

Vaz - Aqueles pústulas de informações eram um bando de safados, vagabundos, que não faziam nada e viviam correndo atrás da gente, para saber o que estava acontecendo, para puxar o saco do seu chefe, pegar o telefone e prestar um serviço para Brasília. Mandavam botar o fulano pra fugir. Eles queriam que o Genoíno fugisse pra matá-lo. Haviam brigas, sim. Ele está vivo porque eu não deixei matar. "Bota esse cara no avião. Bota esse cara pra Brasília". Enquanto os malucos diziam: "Não, tem que deixar ele fugir". Era um bando de vagabundos da informação, sem curso nenhum. Para eles, o mais fácil era matar, acabar com o cara... É assim? Não, isso não pode ser assim, não. Nós somos do Exército para combater. Morre-se em combate ou fere-se em combate. E não se pode pegar o guerrilheiro, levar para um > canto e pá, pá, pá...

JN - O que mais lhe impressionou em tudo isso?

Vaz - A humildade, a modéstia de equipamento e de armamento, ao lado de uma determinação e coragem inabalável dos guerrilheiros do Araguaia na defesa dos seus ideais contra Fal, Parafal, armamento pesado, helicópteros, foguetes, granadas de mão...

JN - Hoje, os militares falam em causas sociais, chamam o regime de exceção de ditadura mesmo e são contra a tortura. Esse discurso é para camuflar a realidade que viveram antes ou naquele tempo vocês já tinham essa consciência?

Vaz - Sempre houve um certo nojo à ação política dentro do Exército. E há até hoje. Mas nós tivemos no passado muito mais generais políticos, que usavam farda por acaso. A república e o tenentismo são exemplos. Com a maior divulgação dos meios de comunicação, maior liberdade de expressão e informação a coisa mudou. A mentalidade do Exército hoje é completamente diferente.

JN - A formação do soldado regular é na base das virtudes que chegam até ser ingênuas, como o senhor falou. Em contato com um combatente guerrilheiro, ele não poderia ser influenciado?

Vaz - Poderia! Havia esse perigo. A técnica e formação psicológica do guerrilheiro são perigosas para o militar, porque são muito plásticas.

JN - Hoje, a chamada condição objetiva revolucionária existe?

Vaz - Os sem-terra são um exemplo...


Um comentário:

João Carlos Campos Wisnesky e Myrian Luiz Alves disse...

Do ex-sargento Renato Califa, por email.


"No início havia o receio de as patrulhas avançarem contra os focos da guerrilha, em geral as duas patrulhas do major Thaumaturgo saiam à noite e emboscavam pela manhã. Quando voltavam na baiuca de Xambioá, agrupavam-se coordenadores, analistas e agentes atrás de novidades do front. Nos meses de maio a setembro de 72 os OPE fizeram dezenas de incursões, que fizeram a guerrilha recuar para dentro de matas fechadas. Os grupamentos do BIS 1 e 2 cercavam as Andorinhas, e os soldados do centro-oeste guarneciam estradas e postos ocupados (Caianos, Araguaná, São Geraldo e Xambioá)."
Ex-sargento Renato Califa.