domingo, 27 de novembro de 2011

Emoção e solidariedade


João Carlos




Hélio Luís Navarro de Magalhães, Edinho, do Destacamento A.
Filho de almirante e sobrinho de ministro interino da Marinha. Preso ferido, 
sua sobrevivência é colocada em dúvida pelos relatórios de 1993


Da percepção dos sinais físicos (luz, som, choque etc.), surgiram os reflexos, os sentidos, a solidariedade das espécies e a emoção da humanidade, na grande engenharia do tempo sem tempo.

O uso desses sentimentos primordiais para sensibilizar a nação brasileira para obter vantagens mesquinhas é de dar nojo. Esse grupo de vampiros e mocreias mata a poesia de quem lutou pela liberdade. Chega ao paradoxo de mover ações contra procurar guerrilheiros que possam estar vivos. Se estiver vivo ótimo, do contrário não atrapalhem a busca de seus restos mortais.

Um dos mais prováveis a ter sobrevivido, Edinho, é de grande importância para mim. Esclarecer, como e por que quando fui abandonado, pois ele estava presente e no comando do deslocamento que fazíamos. Relatarei como estavam o clima e o estado emocional naqueles momentos.

A excitação era grande, quando cheguei ao acampamento com Nelito, carregado de mandioca, todos estavam secando suas munições e polindo suas velhas e toscas armas. Sônia se aproximou e me cochichou a eminência de fazermos um ataque.

- Até que enfim vamos tomar a iniciativa, falei. Ela sorriu.

Logo em seguida, surgiu Zé Carlos ordenando que fosse com o Edinho para uma tarefa, com dois rapazolas e outro quase menino, que haviam entrado na luta. 

Deixamos o restante do destacamento e saímos com destino ignorado, o que era de praxe e contra qualquer bom senso: se deslocar sem saber o destino nem a missão.

Como quase sempre acontecia, fui de batedor à frente do grupo, e parei quando chegamos ao aceiro de uma roça. Edinho se aproxima e faz sinal para eu avançar, o que acho estranho, pois era contra as normas atravessarmos descampados.

Sigo em frente cautelosamente, ele se aproxima e me manda acelerar. Obedeço, e rapidamente atravesso a roça. Aguardo um pouco e eles não chegam, espero alguns minutos e começo a assobiar como o jaó, código usado em circunstâncias de aproximação de provável grupo. O silêncio é absoluto. Retorno pelo mesmo caminho. 

Não ouço qualquer ruído, repito os sinais e nenhuma resposta. Depois de algumas horas, sigo até um local onde estivemos acampados algumas semanas. Não encontrei ninguém. Volto ao aceiro da roça e procuro nas proximidades, encontro uma estrada de construção recente, a terra ainda era úmida.

Armo a rede perto do aceiro ainda na esperança de eles chegarem. Durmo impressionado com a imagem da estrada aberta, e com a constatação de estarmos vulneráveis. Na manhã seguinte, tomo a decisão de ir em direção à Beira.

Além de esclarecer esses e outros fatos, ficaria feliz em saber de uma vida poupada.

Conheci o camarada “Corção” (José Roberto Brum de Luna), responsável pelo partido na Faculdade Nacional de Química, e liderança, entre outros, do Edinho no setor estudantil do Rio de Janeiro. Estivemos juntos também no Comitê Universitário onde fui responsável pela Agitação e Propaganda.

Encontrei-me com Edinho um mês depois de chegar ao Araguaia, quando estava no PA da Bacaba. Piauí me deu ordem de pegar com ele um embrulho que não podia ser aberto. Entrei na mata no rumo indicado, havia chegado há menos de um mês, mas confiei no meu senso de direção. Edinho chegou atrasado ao ponto indicado e sem a encomenda. Conversamos um pouco, apesar de seu espírito sério e reservado, sobre o P.A. da Metade, seu agrupamento, comandado por Nelito.

Depois de abandonarmos o P.A. da Bacaba, por causa do desaparecimento do Jurandir, encontrei-o novamente antes do início do conflito, quando já estávamos estabelecidos no P.A. do Fortaleza, que havíamos acabado de construir, poucos dias antes da invasão das Forças Armadas. Fizemos o mapa com a quilometragem do perímetro da área desde o P.A. do Fortaleza até a região do Some Homem, Três Barracas, São Domingos das Latas e da Bacaba, perto da Transamazônica.

Edinho ficou alguns dias no nosso P.A. Recentemente, uma cobra “limpa campo” se estabelecera entre as palhas de Babaçu que cobriam nosso teto, aparecendo e desaparecendo atrás de ratos. Eu sabia não ser venenosa, mas por ser cobra me incomodava. Em certo momento ela colocou a cabeça de fora em cima da cumeeira, peguei o rifle 22 e apontei. Edinho ainda gritou.
- Você vai feri-la e vai ser pior.

Mesmo com pouca chance, apertei o gatilho. Em segundos, ela deslizou e caiu inerte com a cabeça perfurada. Edinho pegou a cobra, abriu sua boca e mostrou que ela não tinha veneno. Coerente, naquela noite ele rejeitou a iguaria frita.

No outro dia, fomos explorar uma vereda de caçador paralela ao caminho que ligava o Peazinho ao P.A. Fortaleza. Achamos vários locais excelentes para emboscadas e fustigamentos. Retornei pela vereda e ele quis ficar um pouco mais. Ao pular por cima de um tronco enorme, senti algo estranho e olhei para trás.

Havia uma surucucu “pico de jaca”, enrolada sobre si mesma em posição de ataque, o volume ia até o meu joelho. Olhei ao redor para ver se havia outras. Sua cabeça ereta e seus olhos me incomodavam. Escondi-me no mato. Edinho aparece e lhe aponto a cobra, que some enquanto discutíamos seu destino.

Quando as Forças Armadas invadiram a mata,  permanecemos em contatos esporádicos, nos mesmos acampamentos, por  aproximadamente vinte meses.

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