sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O costume do banho de rio se estendeu às tropas



Rio Araguaia, nas margens da área da Base Militar, 1972. Equipes da FAB e alguns paraquedistas.
 De costas, vê-se o então major Thaumaturgo Vaz, na mesma semana em que fez 
o ousado resgate do corpo do cabo Rosa, da 8ª Região Militar” 
 (Álbum sargento Califa, FAB)  

 Ex-sargento Califa, da FAB

     Na fazenda de exploração de cristal de rocha do rio Araguaia, que ficava ao sul de Xambioá, dos Martins, havia uma pista de piçarra cujo comprimento distava 1000 metros. Nos anos 1960, a pista ficava registrada como alternativa de emergência para o sobrevoo da Amazônia, nos mapas do Correio Aéreo Nacional. Foi nessa pista que desceu o C-47 cargueiro de 25 lugares da FAB que trouxe a primeira leva de militares e equipes de informações em maio de 1972.
    
      Ao lado do acampamento, havia uma abertura para o rio onde o pessoal das forças armadas tomava banho. Curiosamente, um barqueiro paraense chamado Zé Alípio, que ‘administrava’ o bordel do Vietnam, e negociava cartuchos e armas para os paulistas*, disse certa vez ter visto Osvaldão se banhando no remanso dos Martins, local em que lascas de cristal eram cortadas para serem levadas de barco rio abaixo.

*Paulistas = Guerrilheiros

A todos, bons novos tempos!



"Queremos ser libertados. O que dá uma enxadada no chão quer saber o sentido dessa enxadada.


E a enxada do forçado, que humilha o forçado, não é a mesma enxada do lavrador, que exalta o lavrador.


       A prisão não está ali onde se trabalha com a enxada. Não há o horror material. 


       A prisão está ali, onde o trabalho da enxada não tem sentido, não liga quem o faz à comunidade dos homens.


             E nós queremos fugir da prisão."
                                                                                                 


                                                                               (Antoine de Saint-Exupéry, Terra dos Homens)                                                                           

domingo, 11 de dezembro de 2011

Ao Presidente Lula, neste Dia Internacional de Direitos Humanos


“Nós não herdamos a Terra de nossos avós, nós a
 tomamos emprestada de nossos filhos.”
 (Cacique Seattle, 1854)



Ao Exmo. Senhor
Ex-Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva

Esta é a terceira carta que dirijo ao senhor. A primeira, em 1997, enquanto assessora do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, dizia-lhe que não desistisse de sua candidatura à Presidência da República. 
O momento era delicado. Denúncias do antigo militante de esquerda e do PT, Paulo de Tarso Wenceslau, abalavam o partido e sua honra. Quem participou das articulações políticas daqueles dias sabe o que se passou. 
O denunciante era grande amigo do então presidente do partido, José Dirceu, e participara do sequestro do embaixador americano, em 1969, realizado pela guerrilha urbana para resgatar prisioneiros políticos como Wladimir Palmeira, José Dirceu e Gregório Bezerra, entre  outros. 
A segunda carta já lhe foi dirigida como Presidente da República. A missiva alertava-lhe que o então Ministro da Defesa, José Viegas, não falava lá muito a verdade ao dizer que o Estado brasileiro não possuía arquivos do regime militar.
O texto seguiu acompanhado de um calhamaço de relatórios militares e fotografias de mortos e prisioneiros do Araguaia.
Esta mensagem pública, de hoje, Presidente, pretende um apelo. O senhor já alcançou seu objetivo. Com origem operária, governou o país por dois mandatos. Fez sua sucessora. Mas, veja como se encontra nossa nação: após a queda de seis ministros, cinco deles, dos mais variados partidos, alvejados por denúncias de corrupção, e o outro, como fez parecer, por malcriação à Presidente. Agora, surgem denúncias contra o ministro da Indústria e Comércio, Fernando Pimentel, ex-prefeito de Belo Horizonte. Ligado no passado e presente diretamente à Presidente da República.
Como se sabe, a trajetória desse ministro não é das mais queridas internamente no PT. Portanto, é provável que os petistas, com exceção da Presidente, defendam por pouco tempo o ministro hoje alvo da “mídia golpista”, segundo a linguagem atual de fanáticos e puxa-sacos, embora não chamem de golpista a Polícia Federal, responsável pela maioria das investigações contra autoridades públicas.
E essa “mídia golpista” e seus trabalhadores tratavam bem o PT, antes de ele chegar ao poder, ao contrário do que ocorria a outras agremiações de esquerda. Relacionavam-se normalmente com alguns de seus dirigentes, a exemplo de José Genoíno, hoje bastante magoado com a imprensa, após denúncias de 2005 que o atingiram enquanto presidente da legenda.
Na questão do Araguaia, por exemplo, Genoíno, embora ciente, nada fez para tirar restos mortais de seu antigo camarada, seu vice-presidente do DCE da Universidade Federal do Ceará, Bergson, entre outros ainda guardados, do armário do Ministério da Justiça, escondidos por uma pequena corja de Direitos Humanos, que pretendia condenar o Brasil na Corte Internacional da Organização dos Estados Americanos durante sua gestão, Presidente Lula.
E conseguiu seu intento, roubando a história gloriosa de revolucionários que, com erros e acertos, lutavam por liberdade. Roubo agora utilizado para maquiar a promiscuidade política que envolve setores da esquerda com os usurpadores de sempre.
O que desejam os líderes desses setores? Fazer de nossos sonhos respaldo para enriquecimentos individuais, em sua maioria, ilícitos? 
Lembro-me de Vladimir Palmeira na plenária do PT do Rio, no auditório da UERJ, durante a conturbada articulação com Garotinho: companheiro Lula, sou aliancista, mas o que se vê  nos noticiários a respeito da aliança pretendida por vocês, diria que isso não é aliança, é um cordão sanitário.
Pois foi com esse esse cordão, ou aliança, que amplos setores da esquerda chegaram ao poder. Pergunta-se para quê? Para a educação continuar com seus índices ladeira abaixo? Ou o saneamento básico e o esgoto estagnarem-se em patamares tão baixos como os dos mais pobres países? Para ver índios serem tratados com descaso sub-humano?
E, em meio a isso e outros desencantos, um ministro de Direitos Humanos, que mentira em sua gestão, sair do governo e ganhar anistia político-financeira tal como uma compensação pela perda do cargo?
Mentiras, mentiras. Aprendidas com mais afinco, pode-se ter certeza, com pessoas como Duda Mendonça. E foi a respeito dele que ocorreu uma de nossas conversas, aqui no Rio. O homem fizera uma propaganda de TV do partido mostrando ratos roendo a Bandeira do Brasil. Lembro-me de ter dialogado com a ex-governadora do Distrito Federal, Arlete Sampaio,  também chateada com aquela peça.
O afamado publicitário, defensor de rinha de galo e pescador de marlin, responsável pela campanha de Joaquim Roriz contra a reeleição de Cristovam Buarque em 1998, pregara, por exemplo, o programa Tolerância Zero, copiado dos Estados Unidos e usado por ele em outras campanhas no mesmo ano, como a do petista Jorge Viana, no Acre.
Antes, em 1996, Duda usara efeitos especiais para inventar um tal fura-fila, na campanha de Celso Pitta a prefeito de São Paulo.  E todos sabem no que deu.
Para não estender demais, pode-se dizer que as peças aqui citadas são despidas de ética.
É preciso respeitar os símbolos pátrios, como a tolerância, incluindo a do relacionamento com adversários políticos, é algo a se praticar diariamente. Filas, quando inevitáveis, devem ser respeitadas, como ensinou Florestan Fernandes durante seu tratamento de saúde no Hospital do Servidor, em São Paulo.
Ao retornar de uma viagem ao Araguaia, em novembro de 2001, após a Expedição Antígona, dirigida por seu advogado e deputado petista, Luiz Eduardo Greenhalgh, sugeri-lhe, que, se chegasse ao poder, e eu acreditava na sua vitória, observasse com carinho a região do Araguaia, em especial o sudeste do Pará. 
Encontrava-me ainda emocionada e espantada não apenas com a incrível memória social deixada pela guerrilha, como, também, por saber um pouco da incrível e assustadora riqueza em meio à carência quase absoluta de ações do Estado na região.
E é com profundo pesar que soube que a campanha pela divisão do Estado do Pará, em plebiscito deste domingo, é dirigida gratuitamente por Duda Mendonça. Eu, que até poucos dias atrás, defendia a divisão, por andar um pouco por aquele Estado, fiz como a Metamorfose Ambulante, do Raul Seixas, permiti-me mudar de opinião.
Apenas por ser esse homem o dirigente da campanha publicitária do Sim. Torço, agora, pelo Não, com as desculpas ao meu colega Val-André Mutram, jornalista, defensor da criação do Estado do Carajás. Val é “dissidente” político da família de libaneses, que fez da castanha-do-pará fonte de exploração e riqueza. Algumas daquelas antigas fazendas, hoje, produtoras de gado, foram adquiridas recentemente por Daniel Dantas.
Vale destacar que a área do Carajás é uma das mais ricas províncias minerais do planeta.
Todo o Estado do Pará é igualmente rico em água potável. Há pouco, descobriu-se um dos maiores aquíferos do mundo na região de Santarém. Abriga grandes e belos rios, como o Araguaia, Tocantins, Tapajós, e, entre outros, o Xingú, onde se constrói a polêmica hidrelétrica de Belo Monte.
Estas linhas solicitam-lhe, apenas, que aproveite sua respeitada liderança para alterar a ordem das coisas. Ajude os meninos das novas gerações a entender a nação e a natureza como o fez o cacique Seatlle, há mais de 150 anos, sempre lembrada por defensores da vida no planeta ao redor do mundo.
A unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues. Vê-se a intolerância até mesmo com artistas sempre amigos do PT por se manifestarem contra a grande obra no Pará. Em uma democracia, o debate e  a discordância de ideias devem ser a primeira regra de quem pensa ser esquerda. Do contrário, o senhor não teria governado o país. E o fez em campanhas pacíficas, após duas décadas em que militantes de esquerda, militares e  civis inocentes feneceram em resultado do desacordo ideológico naquele mundo então dividido pela guerra fria.
Queremos saber, como cidadãos de uma nação, o que ocorreu naqueles tempos, sem usurpações, ódios ou revanchismos tardios. Saber o se passou para melhor compreender os interesses que hoje dirigem o poder e a riqueza do Brasil.
A história não é estática, senhor Presidente, e o povo é, algumas vezes, cruel. Do que ele gosta hoje, muitas vezes deixa de gostar amanhã. Eleição é barganha. Vota-se, quando se é coerente, naquele que oferece mais qualidade de vida à população. Essa é a meta eleitoral nos países democráticos. Já para a história, o que importa é o comportamento. O restante some com a passagem do tempo.
Naquela primeira carta, comentei as palavras do Eclesiastes, quando diz que tudo na vida é vaidade, ou, ainda, "lembre-se de teu criador nos dias de sua mocidade".
Esperamos todos que sua sucessora encontre dias de paz em seu governo, pois, até o momento, o que se vê de "bom" são informações em torno de uma Comissão da Verdade, cujo nome já é, por si, arrogante, e antes de nascer, já estar envolvida por mentiras e hipocrisias, como temos mostrado neste blogue.
São situações, como agora as denúncias contra mais de 20 reitores de universidades, que, comprovadas, mostram inédita desfaçatez e tamanha cara de pau à solta no país, que nos deixam, no mínimo, vermelhos de vergonha.
Desejando-lhe boa e pronta recuperação, respeitosamente,

Myrian Luiz Alves
Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2011
Dia Internacional dos Direitos Humanos

João Carlos, Adalgisa e sua filha, em São Domingos do Araguaia, em 2010. Lembranças e saudade dos antigos moradores, como sua família, das matas do Araguaia, entre eles, e, em especial, de Beto (Lucio Petit da Silva), do Dst A, irmão de Jaime e Lúcia Maria Petit, do Dst C. O marido de Adalgisa é um dos mais sofridos sobreviventes da prisão da base de Bacaba. Até o momento, nenhum centavo de indenização da Anistia lhe havia chegado. A anistia aos torturados daquele conflito somente foi incorporada à Comissão do Ministério da Justiça em 2008, dois anos após as duas primeiras indenizações serem concedidas a moradores.
 Os auto-defensores de DH entendiam que a anistia deve ser dirigida apenas a quem era ganizado. 
Adalgisa sente por não morar  mais na roça.  Em sua casa, na cidade, como em boa parte da região,  não há saneamento.  Ainda hoje, naquela imensa região, como já alertavam documentos guerrilheiros e  militares, entre 1972 e 1974, o Estado permanece ausente

Zebão


João Carlos





“Liberdade sem socialismo é privilégio, injustiça; socialismo sem 
liberdade é brutalidade e escravidão.”
(Bakunin)

Paramos às margens do Saranzal, na então divisa da área do Destacamento A com o B. Naquela missão éramos batedores do Nunes.Entrou no rio, com o leito seco, na época, ordenando que não olhássemos para onde ele ia. Assim que ele se afastou, debruçamo-nos para observar para onde ele se dirigia. Alguém se aproximou.
– Aquele cara parece com o Beto.
– Deve ser seu irmão, respondi.


Satisfeita nossa insubmissão à arrogância, nos sentamos.
– Sujeitinho metido, pimpão, e...
– É o tipo que o partido gosta, comentei.


Repentinamente, ele balançou a cabeça, tenso, olhou para mim e disparou.
– A ordem é quebrar seu espinhaço.


Resmungou qualquer coisa parecida a “isso estava me incomodando, agora é contigo”. Ele não me pediu discrição, seu rosto indicava ter-se livrado de um peso.


Como sempre, nos momentos de grande tensão, uma tranquilidade de nirvana me envolve e minha mente fica clara. Internamente, o tempo perde sua função.
– É isso mesmo, são ordens da Comissão Militar. Ele repetiu como se eu não tivesse entendido.
– Escutei, Zebão.


Percebi que a sua luta, entre a disciplina e a consciência, terminara, enquanto um turbilhão de eventos passava em minha cabeça.


Zebão, morto com Zé Carlos (André Grabois) e Alfredo (Antonio Alfredo Campos), em 14 de outubro de 1973, pelo grupo do então major Licio Ribeiro Maciel, guiado pelo minerador João Pereira, morador de Apinajés, em São João do Araguaia. No encontro com o grupo chefiado pelo comandante do Dst A, Zé Carlos, que abatera porcos a tiros, Nunes foi preso, ferido, e levado para a Casa Azul, dos oficiais, em Marabá, no DNER, onde faleceu. Se forem levada em consideração as novas informações levantadas pelo Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), os corpos dos primeiros mortos da Operação Marajoara podem ter inaugurado o então novo cemitério da Cidade Nova, em Marabá, em terreno pertencente à Força Aérea 

Um guerrilheiro, diferentemente do soldado da tropa regular, deve ser criativo e ter iniciativa. Novato, ousei apontar a hipótese de erro em nossa cartilha militar. Fui para o limbo.


Num partido stalinista, quem ocupa posição de comando hierárquico “não comete erro”. A autocrítica, uma balela, funciona apenas para os que estão abaixo na hierarquia. 


Semelhante a um ato de humilhação, era usada de maneira oportunista como necessidade da disciplina naquele enfrentamento à ditadura militar.


Se há resistência, dá-se tarefas secundárias, vigiadas e sob controle. Ainda na cidade, vi isso acontecer algumas vezes. Agora, ocorria comigo. Não querendo prejudicar a relação entre os camaradas, e generalizar a quebra da disciplina, não reclamava. Nas raras reuniões, e em público, nunca numa conversa a dois, externava minha opinião e ficava sem resposta razoável.


Beto e Jaime, Lucio e Jaime Petit da Silva. Preso em abril de 1974, Beto (Dst A) pode ter sido levado para Brasília. Era "quadro" importante do partido. Percorria universidades pelo interior paulista à procura de novos militantes. Jaime  (Dst C) foi morto em dezembro de 1973. Contaremos em 
mais detalhes um pouco da história dos irmãos da Engenharia de Itajubá (MG)

Numa ocasião, fiquei de sentinela durante vinte e quatro horas. Ao voltar pela manhã foi ridículo o proposital ar de “não sentimos sua falta”. Era um desperdício e uma falha, depois de quatro horas ninguém fica concentrado para observar sinais de perigo. Eu era atleta, e havia me destacado como o melhor das olímpíadas da universidade. Atirava bem e me deslocava dentro da mata com velocidade considerável.


As estranhas ordens, como a de que eu me afastasse quinhentos metros, e testar a velha metralhadora INA, engasgada com uma bala no cano, só não provocou um acidente porque eu sabia que ela falhara na mão do Lauro, e a vistoriei.


Ao retornar, falei que tinha disparado sem problemas, e algumas caras ficaram apalermadas. Ou ainda, a ordem de mandar secar, numa fogueira, uns vinte quilos de pólvora úmida numa panela que explodiu na minha cara. No reflexo, pulei para trás quando apareceu um lindo rubro no meio da panela. Eram ordens desconexas, com claras intenções.


Pensava, com otimismo, que no processo de derrotar a ditadura militar, o stalinismo não vingaria no espírito brasileiro. Errei redondamente e ao quadrado e de todas as formas. Ele não admite sonhadores, mas convive confortavelmente com ladrões. Que vergonha e tristeza, camarada, o que estes corruptos estão fazendo com a nossa herança histórica.


Continuei com a tola esperança de que a necessidade da sobrevivência das nossas forças nos colocaria na correnteza das estratégias e táticas corretas, e os obrigaria a navegar no curso certo para formar um Exército Popular e vencermos. Estava enganado, a teimosia e a vaidade foram maiores.


A notícia não deixava margem de dúvidas à minha marginalização.
– Sabia que estava na ordem do dia, mas não de forma tão explícita, foi dada assim na bucha, sem nenhum comentário?
– Dessa forma, respondeu, e encerramos o assunto.


Tenho orgulho da dívida de gratidão com essa pessoa correta. Para exemplificar, fizemos uma semana de treinamento em vários tipos de ações necessária em uma guerrilha. 


Orientação, emboscada, fustigamento, armadilhas, etc. Havia rodízio no comando dessas ações, e o escalado quase sempre escolhia o Zebão para sub-comandante.


Foi o primeiro companheiro que conheci na Bacaba. Era fim da tarde quando chegou conduzindo duas mulas. Calmo, cumprimentou-me e se apresentou.
– Zebão.
– Como é que é?


Ele repetiu sorrindo sem dar explicações, e acrescentou que iria cortar umas canas para os animais.
– Você gosta deles? Perguntei quase afirmando, enquanto o ajudava.
– Odeio, respondeu com a calma peculiar. Rimos sem parar por uns bons momentos. 


Landinho se aproximou curioso. Como ele dava a uma galinha zarolha o milho que ela não conseguia bicar,  chamando-a carinhosamente por Tui...tui, repeti a pergunta feita a 


Zebão achando encontrar compreensão para aqueles úteis animais. Ele praguejou e xingou com mais veemência ainda, alertando-me para não confiar naqueles sonsos.
– Eles quase me mataram de raiva quando passei seis meses carregando material de Mato Grosso até Goiás. O sotaque do interior paulista se acentuou e nossas risadas aumentaram.

João Gualberto Calatroni, de família de ferroviários, contava histórias de luta em Cachoeiro de Itapemirim. Nas esquinas do universo ainda nos encontraremos. A existência acaba, no entanto, a vida é incriada sem princípio nem fim.
Até lá e que seu bom carma o proteja, com a boa sorte que mereces.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Brasileiros se encontram na história



João Carlos



A Pátria, de Pedro Bruno* 
(1918, Museu da República, Rio de Janeiro)

Na Ilha de Paquetá, vizinho d’água, conheci histórias do mar.

Onde terminam as tolas ambições, no cemitério, entre espécies de árvores imponentes e bonitas, sem ar de tristeza e com mangas deliciosas, sempre objeto de desejo da gurizada, em bandos o invadíamos, passando com admiração e certo encantamento, ao largo do belo e misterioso monumento de navio logo na entrada.


Ocupa um espaço de uns dez metros quadrados, com ares de epopeia. Entre o real e o fantástico, com chaminé, mastros, âncoras, cordas e demais apetrechos trabalhados com gosto e refinamento, continua solitário.

Várias histórias foram criadas. A de maior credibilidade, um naufrágio. Mas como um navio grande, com ares de uma fragata de guerra, uma embarcação daquele porte, afundaria nas plácidas ondas da baia da Guanabara?


Monumento à Revolta da Armada (1893), no campo santo de Paquetá. Idealizado por Pedro Bruno, em 1912, quando os revoltosos da Chibata, de 1910, começavam a sair das prisões.
  O cinzel do artista inscreveu dedicatória à Revolta da Armada, sem a nomear: 


 1893  
ABNEGADOS NA VIDA E VALOROSOS NA MORTE
                                HOMENAGEM DOS SEUS COMPANHEIROS DA MARINHA
                                                                               1912                                   

Ainda menino, voltava, certa vez, com meu pai sempre elegante, terno e chapéu panamá, de uma de suas idas ao centro do Rio de Janeiro. Na Praça XV, meu olhar curioso ainda se agradava com o movimento dos bondes, quando ele estancou perto da estação das barcas.

Sentado nos degraus da imponente construção de 1835, havia um senhor escuro, semblante duro, firme e tranquilo. Impressionou-me meu pai curvar-se cortesmente e murmurar-lhe palavras que eu não entendi. Maior ainda foi a surpresa ao ver o outro menear a cabeça durante algum tempo, até consentir em aceitar um maço de notas passado com discrição.

Inquieto, sem chance nem tempo para compreender o que se passava, fui conduzido pela mão firme e forte de meu pai para a barca.





Ao sentarmos,  meu pai, com um leve sorriso nos lábios, observou a excitação que via em meus olhos, e murmurou um nome - João Cândido.


- Parente do vovô? Exclamei admirado.


Por coincidência, o pai da minha mãe, um dos fundadores do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro, chamava-se Adriano Cândido de Campos.


 Ele sorriu novamente. – Não.

Na viagem, ouvi a história da Revolta da Chibata. Meu pai, nascido e criado no Caju, em meio ao porto, indústria, barcos de pesca e tudo que vem junto, narrava fatos com detalhes que ficaram gravados na minha memória. Dali em diante prestei atenção a tudo que fosse ligado ao fato.


Durante o movimento dos marinheiros, em março de 1964, convocaram o velho Almirante Negro. Ele foi direto e sucinto.


- Revolta de marinheiro é no mar. 


Sugeri seu nome para a base fundada na faculdade, e foi vetado.    
                   

O mausoléu misterioso de Paquetá é um dos muitos legados de Pedro Bruno, que, passeando pacato pelas ruas, realizava feitos grandiosos sem incomodar ninguém. 

Comprava pássaros presos nas gaiolas dos meninos, levava-os à sua casa, e, longe de olhos alheios, soltava os animais e quebrava suas prisões.




Cemitério dos Pássaros de Paquetá, obra de Pedro Bruno. Único no mundo, sua parede frontal exibe poesias de todos os tempos, dedicadas à liberdade e beleza das aves do Brasil


Designado pelo prefeito, dr. Pedro Ernesto, sem remuneração, ele administrou a Ilha, e por extensão o cemitério, não permitindo túmulos suntuosos para não fazer distinção entre pobres e ricos. Por paixão aos seres alados, criou na área vizinha ao campo santo, outro dedicado somente a eles, algo sem paralelo no mundo.



Acredito em sonhos à maneira encontrada pelo espírito generoso do escultor para homenagear, bem ao seu gosto, os que lutaram, por dignidade no trabalho e melhores condições sociais, como os heroicos marinheiros daquelas revoltas, numa obra sem nome.

Mas não desejo o mesmo anonimato aos meus companheiros.


Serra das Andorinhas, em são Geraldo (PA), vista de Xambioá (TO)
Palco da Guerrilha (1972-1975), habitada antigamente por povos que deixaram rastros de sua existência em pinturas e cerâmicas, abriga uma das mais ricas biodiversidades biológicas do país. Possui 292 cavidades geológicas, entre elas 26 cavernas e 36 grutas 

No Araguaia, fui a alguns lugares onde provavelmente devem estar os corpos dos companheiros, como no cemitério de Xambioá, no qual alguns camaradas foram sepultados em público e, outros, com mais reserva, como já se comprovou até o momento. 

Embora Maria Lucia Petit e Bergson Gurjão Farias tenham sido identificados, outros restos mortais foram retirados dali e de área de reserva indígena, próxima aos locais de passagem ou de divisa dos três destacamentos. Sob outros interesses, jazem há anos, em Brasília.

O que impediria saber o destino dos mortos?
                                 
A guerra é o pior acontecimento da humanidade, sempre feia e horrível. Alguns conseguem manter a dignidade.

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* Pedro Paulo Bruno (Paquetá, 14 de outubro de 1888 – Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1949). Pintor, cantor, poeta e paisagista brasileiro. Sua obra A Pátria, de 1918, que retrata a bandeira do Brasil sendo bordada no seio de uma família, figurou no verso da nota de duzentos mil cruzeiros.