segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Por que o Araguaia?







 Antígona, de Brennand


Por que o Araguaia?

Myrian Luiz Alves



"...Quem nesse mundo faz o que há durar:
Pura semente dura: futuro amor..."
(Relicário, Nando Reis)"


A petição de 1982, de autoria de 22 familiares de guerrilheiros do Araguaia, elaborada pelo advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, em co-autoria com Sigmaringa Seixas, recebeu sua sentença da Justiça Federal somente em 2003.

Inspirada e baseada em Antígona, de Sófocles, representada em 442 a.C, ela pergunta à União o paradeiro dos mortos da guerrilha. Defende o direito inalienável de os mortos serem sepultados dignamente.

O Brasil teve 144 “desaparecidos” durante o regime militar, entre 1964 e 1976. Na Guerrilha do Araguaia, composta por cerca de 80 pessoas ao longo de seus três anos, morreram 59 guerrilheiros, e, como já falamos, 16 militares, segundo Sebastião Curió, um dos responsáveis pela Operação Sucuri, de infiltração e informação (1973). Pereceram mais de 20 moradores. A sentença estendeu o direito das 22 famílias a outras não incluídas na petição bem como às de moradores.

Dos militares mortos pouco se sabe. Tratamo-os como se não fossem sujeitos também da história. Compreende-se que tenham sido sepultados em suas cidades de origem. Há um militar desaparecido, o soldado Valdir de Paula, cujo sumiço é registrado em boletim de  ocorrência do comando da época, em agosto de 1973. Não se sabe o que ocorreu a ele, incluído em portaria do ex-Grupo de Trabalho Tocantins, instituído pelo ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, para o cumprimento da sentença federal, em 2009, após dois recursos da União.




Meninos do Araguaia, retratados por Tereza Sobreira, 2009.
A guerrilha é tema do currículo escolar na região

O começo da pesquisa

Myrian Luiz Alves

Minha introdução ao tema Guerrilha do Araguaia surgiu em 1990-1991, durante a CPI de Perus, sobre desaparecimentos políticos, da Câmara Municipal de São Paulo, presidida pelo vereador Julio Cesar Caligiuri, descendente de calabreses, professor de biologia, com estudo em medicina legal.

Durante 120 dia passaram pela CPI ex-governadores, entre outras autoridades de S.Paulo, torturadores, guerrilheiros, familiares, delegados e legistas,  a maioria para tratar de assuntos relativos à guerrilha urbana. Várias organizações foram ali estudadas. No decorrer da CPI, militantes enterrados no Cemitério de Perus foram reconhecidos por fotografias encontradas nos livros do Instituto Médico Legal de São Paulo.


Sugeri aos vereadores incluir a Guerrilha do Araguaia na investigação parlamentar. A CPI, então, ouviu vários depoimentos, que resultaram no resgate do corpo de Maria Lucia Petit, enterrada no cemitério local, embora a busca fosse pelo corpo de João Carlos Haas Sobrinho.

Nos primeiros dias de abril de 2001, recebi um telefonema do então secretário de Relações Exteriores do PCdoB, José Reinaldo, a quem não via há muito tempo. O PCdoB me perguntava se eu sabia algo a respeito do corpo do Joca.

 - Joca, quem é Joca? -, perguntei.
 - É o guerrilheiro italiano, do Araguaia.

Zé Reinaldo me esclarecia que o Partido da Refundazione Comunista, da Itália, perguntara ao PCdoB o destino do calabrês, nascido em San Lucido e que viera para o Brasil aos 11 anos de idade.

A pergunta nada tinha a ver com a determinação de Greenhalgh de instalar o grupo. O PCdoB, afirmava Zé Reinaldo, ainda não tivera conhecimento da investigação que se iniciava.

A questão colocada pelo PCdoB era, portanto, apenas coincidência. Disse-lhe que não sabia nada a respeito do Joca, mas que iria procurar saber. 

Ao chegar em casa, vi no livro Guerrilha do Araguaia, editado pelo PCdoB em 1982, as poucas linhas a respeito de Joca, o ítalo-brasileiro Libero Giancarlo Castiglia. Fiquei triste. Percebi, com aquelas poucas informações, que o rapaz deveria ser muito dedicado ao movimento, até pelo fato de ter morado à beira do Araguaia por longos cinco anos antes do início do conflito, tendo mudado para ali aos 23 anos de idade, no Natal de 1967.

O próprio partido me passou o telefone do sobrinho de Joca, Wladmir Castiglia, morador do Rio de Janeiro. Wladmir me ajudou no acesso à família, que retornara à Itália no início dos anos 70, e participou, em 2001, dos trabalhos da Expedição Antígona, nome dado por Greenhalgh ao grupo por ele coordenado para os trabalhos de busca na região.

Fui aprendendo, pela segunda vez na vida, a conhecer o caráter daqueles militantes, cientes do risco que corriam em meio à floresta amazônica. Norteie-me pela história do Joca, a partir de então. Ao longo desses 10 anos conheci pessoas de sua família, como seu irmão, Antonio Castiglia, morador de Melbourne, Austrália, sua sobrinha Lara, da Itália, e dialoguei com seu irmão Walter, também da Itália, formando um intercâmbio entre três continentes. Joca virou notícia na Itália e no Brasil.



João Carlos, Paulo, do Dst A, em foto pós-guerrilha, no retorno à medicina

Uma das matérias italianas denominou Joca o “Che Calabrês”. Conversei com seus companheiros de guerrilha, Elza Monerat, João Amazonas, Danilo Carneiro, Lucia Regina, e, somente no final de 2009, João Carlos Campos Wisnesky. Mantenho amizade com a família de Eduardo, vizinho de Joca na Faveira. Quando conheci Baiano, seu Otacilio, e sua companheira, Felicidade, disse-lhes que não escreveria sobre o Joca e sobre ninguém mais enquanto seus direitos não fossem considerados pela Comissão de Anistia.

Baiano, que vendera um motor para o barco de Joca, foi barbaramente torturado, quando preso em 4 de abril de 1972. Renasceu como cidadão em 12 de abril de 2006, dia em que vários casos do Araguaia foram julgados pela Comissão de Anistia. Baiano foi o primeiro morador de Marabá a ter seu direito reconhecido, juntamente com o caso de Pedro Onça, habitante das matas de São Geraldo. A anistia aos moradores do Araguaia nunca foi defendida por essas pessoas que teimam em estar à frente de comissões, com o objetivo de obstruir direitos alheios e as informações históricas.

Em consequência de reportagem de Hugo Marques para a revista Istoé, editada por Hugo Studart, por exemplo, o ex-ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, deslocou-se ao sul da Itália para retirar material genético de dona Elena Gastiglia. Esse tipo de ação exibicionista fora realizado também pelo ministro anterior, Nilmário Miranda, em Belo Horizonte. Na capital mineira, a retirada de material para DNA de familiares em geral, ocorreu durante ato público.


                                                                                     (Tereza Sobreira)


                      2009 - General Araújo, da 23ª Brigada de Infantaria de Selva.
                          Convívio e ensinamentos sobre transitoriedade e maniqueísmo                                      


Em 2009 e 2010, busquei novas informações na região como pesquisadora convidada do GTT. Procurei pistas de vários guerrilheiros. No GTT, os pesquisadores dividiam assuntos por área e conhecimento. Embora tenha procurado saber a respeito de vários destinos, o de Joca surgiu espontaneamente numa entrevista com dois moradores que trabalharam para as Forças Legais (militares), ex-vizinhos de Antonio Carlos Monteiro Teixeira e Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a Dina. O primeiro, vizinho em São Geraldo, o segundo, em Abóbora, sudeste do Pará.

“Bateu catolé” na arma longa de Joca, disseram-me os dois, em dias distintos. Um deles, de mesmo sobrenome utilizado por Joca, Bispo, em documentos falsos, quando se deslocava para cidades maiores como Imperatriz e ou o Rio de Janeiro, já em 1971, ano em que sua irmã Wanda o viu pela última vez.

Uma semana antes do “catolé” (quando a munição umedecida impede o disparo), Joca e outros guerrilheiros enfrentaram militares em local próximo a Abóbora. Um sargento foi ferido na perna.

Mandiocas tiradas de uma plantação denunciaram os guerrilheiros dias depois. O rastreador foi chamado e, acompanhado de três equipes militares, alcançou Joca.

Surpreendido, sozinho, Joca tenta atirar nas costas do rastreador, Bispo, que, no susto, a poucos metros do guerrilheiro, escorrega e atira para cima, alertando as equipes. Joca ainda corre e é alvejado nas costas. Ao cair, tenta sacar seu 38, arma em que confiava, segundo afirmou João Amazonas em suas memórias. O guia Silora, na narrativa de Bispo, desarma Joca lhe disparando, com o revólver do guerrilheiro, o tiro mortal no peito.



Joca, primeiro comandante do Dst A: “Se nunca se começa, nunca se sabe. Se não se consegue, paciência.”

(Em resposta à sua mãe quando lhe perguntou sobre sua intenção,
 e a de seus amigos, de mudar o mundo) 


Segundo Bispo, e o ex-soldado Adolfo Rosa, o corpo de Joca foi levado de helicóptero para Xambioá. Bispo afirma ainda que mais de 50 pessoas assistiram à cena. O ex-vizinho de Dina conta também ter visto, em 1972, Kleber Lemos, Carlito, ser levado vivo para Xambioá da mesma forma que viu Telma Regina Cordeiro, Lia, ser levada já em 1974. Os dois na área de Abóbora.

Para Bispo, nenhum corpo de guerrilheiro teria sido largado na mata  - “pelo menos não nessa área daqui”, diz, referindo-se à região entre São Geraldo e Santa Cruz. Por longos anos, imaginou que Lia sobrevivera, porque “Genoíno veio aqui em São Geraldo discursar depois da prisão”, diz.

Dona Elena faleceu em julho de 2011. Não conseguiu, como a mãe de Bergson, saber de seu filho e enterrar, nem “que fosse um dedo”, como dizia. Ao saber de sua morte, o sentimento foi de impotência. As informações sempre estiveram lá, jamais seriam negadas pelos dois moradores, que amargam ainda os prejuízos pelo trabalho recrutado pelo militares sem remuneração.

Assim como Adolfo Rosa, irmão do cabo Rosa, não negou informações à jornalista Taís Morais ou a mim, a quem Taís chamou a Belém ao perceber que Adolfo teria o que contar sobre o Joca. Os detalhes contados em meados dos anos 2000 por Adolfo coincidem com os narrados pelos moradores recrutados pelos militares.

E assim temos feito os jornalistas. Um passa ao outro informações que ajudem a (re)montar esse quebra-cabeça, a mais bela e cruel página de nossa história republicana, vivida em plena guerra fria.

Para facilitar a pesquisa escolhemos personagens, embora tratemos de todos, e tentamos seguir todas as linhas que surgem à medida que nos aprofundamos no tema. Quase todos nós entendemos que a história não é relatada oficialmente, como deveria, por causa do “desaparecimento” de pelo menos 23 prisioneiros e da barbárie também contra civis.

A partir de tantos relatórios já divulgados, cedidos por militares, pode-se, em primeiro lugar, checar as folhas de alteração – prontuários militares - para saber quem eram os oficiais de plantão nas datas fornecidas pela Marinha, relatos guerrilheiros e testemunhos de ex-militares e moradores.

Mas, por que essa turma que diz defender os direitos humanos faria isso, afinal? Se a história for contada, esclarecida em sua maior parte, como e do que viveriam esses vampiros de corpos e do estado?

O diversionismo aplicado por essa pequena e desinteressante turma se locupleta ao dos assassinos de prisioneiros. Militares covardes que, se descobertos, seriam excomungados da vida militar oficial do país.




Eduardo Rodrigues , em visita à Faveira, em 2004, após 33 anos de retirado pelo conflito, na
primeira década do sec. 21.  Tem saudade do café do ex-vizinho Joca, ex-torneiro mecânico, formado no Senai de Vassouras (RJ), servido com o açúcar na mesa


Maiakovski, o poeta da Revolução Russa, dizia que daria seu fígado ao cão faminto postado ao lado da padaria - “toma, cãozinho, coma”.

João Carlos contou-me que Joca dividia a sua pouca refeição com sua mula. Motivo de brincadeira entre os companheiros, o reservado calabrês, nunca autoritário com seus soldados, mostrava doçura para defender um mundo mais fraterno, como ensina o poeta.   

Para pesquisar, ou colaborar com a remontagem dessa história, é preciso, enfim, obter, no mínimo, um pouco do espírito paciente do homem nomeado Livre (Libero), ao nascer, em 4 de julho de 1944. Período final da segunda grande guerra e de comoração da influente Independência dos Estados Unidos.

Dia, ainda, em que se homenageia o nascimento de Giuseppe Garibaldi,fundador de nossa primeira experiência de república, a Juliana, em terras de Santa Catarina.                                      

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