domingo, 4 de dezembro de 2011

Brasileiros se encontram na história



João Carlos



A Pátria, de Pedro Bruno* 
(1918, Museu da República, Rio de Janeiro)

Na Ilha de Paquetá, vizinho d’água, conheci histórias do mar.

Onde terminam as tolas ambições, no cemitério, entre espécies de árvores imponentes e bonitas, sem ar de tristeza e com mangas deliciosas, sempre objeto de desejo da gurizada, em bandos o invadíamos, passando com admiração e certo encantamento, ao largo do belo e misterioso monumento de navio logo na entrada.


Ocupa um espaço de uns dez metros quadrados, com ares de epopeia. Entre o real e o fantástico, com chaminé, mastros, âncoras, cordas e demais apetrechos trabalhados com gosto e refinamento, continua solitário.

Várias histórias foram criadas. A de maior credibilidade, um naufrágio. Mas como um navio grande, com ares de uma fragata de guerra, uma embarcação daquele porte, afundaria nas plácidas ondas da baia da Guanabara?


Monumento à Revolta da Armada (1893), no campo santo de Paquetá. Idealizado por Pedro Bruno, em 1912, quando os revoltosos da Chibata, de 1910, começavam a sair das prisões.
  O cinzel do artista inscreveu dedicatória à Revolta da Armada, sem a nomear: 


 1893  
ABNEGADOS NA VIDA E VALOROSOS NA MORTE
                                HOMENAGEM DOS SEUS COMPANHEIROS DA MARINHA
                                                                               1912                                   

Ainda menino, voltava, certa vez, com meu pai sempre elegante, terno e chapéu panamá, de uma de suas idas ao centro do Rio de Janeiro. Na Praça XV, meu olhar curioso ainda se agradava com o movimento dos bondes, quando ele estancou perto da estação das barcas.

Sentado nos degraus da imponente construção de 1835, havia um senhor escuro, semblante duro, firme e tranquilo. Impressionou-me meu pai curvar-se cortesmente e murmurar-lhe palavras que eu não entendi. Maior ainda foi a surpresa ao ver o outro menear a cabeça durante algum tempo, até consentir em aceitar um maço de notas passado com discrição.

Inquieto, sem chance nem tempo para compreender o que se passava, fui conduzido pela mão firme e forte de meu pai para a barca.





Ao sentarmos,  meu pai, com um leve sorriso nos lábios, observou a excitação que via em meus olhos, e murmurou um nome - João Cândido.


- Parente do vovô? Exclamei admirado.


Por coincidência, o pai da minha mãe, um dos fundadores do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro, chamava-se Adriano Cândido de Campos.


 Ele sorriu novamente. – Não.

Na viagem, ouvi a história da Revolta da Chibata. Meu pai, nascido e criado no Caju, em meio ao porto, indústria, barcos de pesca e tudo que vem junto, narrava fatos com detalhes que ficaram gravados na minha memória. Dali em diante prestei atenção a tudo que fosse ligado ao fato.


Durante o movimento dos marinheiros, em março de 1964, convocaram o velho Almirante Negro. Ele foi direto e sucinto.


- Revolta de marinheiro é no mar. 


Sugeri seu nome para a base fundada na faculdade, e foi vetado.    
                   

O mausoléu misterioso de Paquetá é um dos muitos legados de Pedro Bruno, que, passeando pacato pelas ruas, realizava feitos grandiosos sem incomodar ninguém. 

Comprava pássaros presos nas gaiolas dos meninos, levava-os à sua casa, e, longe de olhos alheios, soltava os animais e quebrava suas prisões.




Cemitério dos Pássaros de Paquetá, obra de Pedro Bruno. Único no mundo, sua parede frontal exibe poesias de todos os tempos, dedicadas à liberdade e beleza das aves do Brasil


Designado pelo prefeito, dr. Pedro Ernesto, sem remuneração, ele administrou a Ilha, e por extensão o cemitério, não permitindo túmulos suntuosos para não fazer distinção entre pobres e ricos. Por paixão aos seres alados, criou na área vizinha ao campo santo, outro dedicado somente a eles, algo sem paralelo no mundo.



Acredito em sonhos à maneira encontrada pelo espírito generoso do escultor para homenagear, bem ao seu gosto, os que lutaram, por dignidade no trabalho e melhores condições sociais, como os heroicos marinheiros daquelas revoltas, numa obra sem nome.

Mas não desejo o mesmo anonimato aos meus companheiros.


Serra das Andorinhas, em são Geraldo (PA), vista de Xambioá (TO)
Palco da Guerrilha (1972-1975), habitada antigamente por povos que deixaram rastros de sua existência em pinturas e cerâmicas, abriga uma das mais ricas biodiversidades biológicas do país. Possui 292 cavidades geológicas, entre elas 26 cavernas e 36 grutas 

No Araguaia, fui a alguns lugares onde provavelmente devem estar os corpos dos companheiros, como no cemitério de Xambioá, no qual alguns camaradas foram sepultados em público e, outros, com mais reserva, como já se comprovou até o momento. 

Embora Maria Lucia Petit e Bergson Gurjão Farias tenham sido identificados, outros restos mortais foram retirados dali e de área de reserva indígena, próxima aos locais de passagem ou de divisa dos três destacamentos. Sob outros interesses, jazem há anos, em Brasília.

O que impediria saber o destino dos mortos?
                                 
A guerra é o pior acontecimento da humanidade, sempre feia e horrível. Alguns conseguem manter a dignidade.

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* Pedro Paulo Bruno (Paquetá, 14 de outubro de 1888 – Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1949). Pintor, cantor, poeta e paisagista brasileiro. Sua obra A Pátria, de 1918, que retrata a bandeira do Brasil sendo bordada no seio de uma família, figurou no verso da nota de duzentos mil cruzeiros.

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