domingo, 11 de dezembro de 2011

Zebão


João Carlos





“Liberdade sem socialismo é privilégio, injustiça; socialismo sem 
liberdade é brutalidade e escravidão.”
(Bakunin)

Paramos às margens do Saranzal, na então divisa da área do Destacamento A com o B. Naquela missão éramos batedores do Nunes.Entrou no rio, com o leito seco, na época, ordenando que não olhássemos para onde ele ia. Assim que ele se afastou, debruçamo-nos para observar para onde ele se dirigia. Alguém se aproximou.
– Aquele cara parece com o Beto.
– Deve ser seu irmão, respondi.


Satisfeita nossa insubmissão à arrogância, nos sentamos.
– Sujeitinho metido, pimpão, e...
– É o tipo que o partido gosta, comentei.


Repentinamente, ele balançou a cabeça, tenso, olhou para mim e disparou.
– A ordem é quebrar seu espinhaço.


Resmungou qualquer coisa parecida a “isso estava me incomodando, agora é contigo”. Ele não me pediu discrição, seu rosto indicava ter-se livrado de um peso.


Como sempre, nos momentos de grande tensão, uma tranquilidade de nirvana me envolve e minha mente fica clara. Internamente, o tempo perde sua função.
– É isso mesmo, são ordens da Comissão Militar. Ele repetiu como se eu não tivesse entendido.
– Escutei, Zebão.


Percebi que a sua luta, entre a disciplina e a consciência, terminara, enquanto um turbilhão de eventos passava em minha cabeça.


Zebão, morto com Zé Carlos (André Grabois) e Alfredo (Antonio Alfredo Campos), em 14 de outubro de 1973, pelo grupo do então major Licio Ribeiro Maciel, guiado pelo minerador João Pereira, morador de Apinajés, em São João do Araguaia. No encontro com o grupo chefiado pelo comandante do Dst A, Zé Carlos, que abatera porcos a tiros, Nunes foi preso, ferido, e levado para a Casa Azul, dos oficiais, em Marabá, no DNER, onde faleceu. Se forem levada em consideração as novas informações levantadas pelo Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), os corpos dos primeiros mortos da Operação Marajoara podem ter inaugurado o então novo cemitério da Cidade Nova, em Marabá, em terreno pertencente à Força Aérea 

Um guerrilheiro, diferentemente do soldado da tropa regular, deve ser criativo e ter iniciativa. Novato, ousei apontar a hipótese de erro em nossa cartilha militar. Fui para o limbo.


Num partido stalinista, quem ocupa posição de comando hierárquico “não comete erro”. A autocrítica, uma balela, funciona apenas para os que estão abaixo na hierarquia. 


Semelhante a um ato de humilhação, era usada de maneira oportunista como necessidade da disciplina naquele enfrentamento à ditadura militar.


Se há resistência, dá-se tarefas secundárias, vigiadas e sob controle. Ainda na cidade, vi isso acontecer algumas vezes. Agora, ocorria comigo. Não querendo prejudicar a relação entre os camaradas, e generalizar a quebra da disciplina, não reclamava. Nas raras reuniões, e em público, nunca numa conversa a dois, externava minha opinião e ficava sem resposta razoável.


Beto e Jaime, Lucio e Jaime Petit da Silva. Preso em abril de 1974, Beto (Dst A) pode ter sido levado para Brasília. Era "quadro" importante do partido. Percorria universidades pelo interior paulista à procura de novos militantes. Jaime  (Dst C) foi morto em dezembro de 1973. Contaremos em 
mais detalhes um pouco da história dos irmãos da Engenharia de Itajubá (MG)

Numa ocasião, fiquei de sentinela durante vinte e quatro horas. Ao voltar pela manhã foi ridículo o proposital ar de “não sentimos sua falta”. Era um desperdício e uma falha, depois de quatro horas ninguém fica concentrado para observar sinais de perigo. Eu era atleta, e havia me destacado como o melhor das olímpíadas da universidade. Atirava bem e me deslocava dentro da mata com velocidade considerável.


As estranhas ordens, como a de que eu me afastasse quinhentos metros, e testar a velha metralhadora INA, engasgada com uma bala no cano, só não provocou um acidente porque eu sabia que ela falhara na mão do Lauro, e a vistoriei.


Ao retornar, falei que tinha disparado sem problemas, e algumas caras ficaram apalermadas. Ou ainda, a ordem de mandar secar, numa fogueira, uns vinte quilos de pólvora úmida numa panela que explodiu na minha cara. No reflexo, pulei para trás quando apareceu um lindo rubro no meio da panela. Eram ordens desconexas, com claras intenções.


Pensava, com otimismo, que no processo de derrotar a ditadura militar, o stalinismo não vingaria no espírito brasileiro. Errei redondamente e ao quadrado e de todas as formas. Ele não admite sonhadores, mas convive confortavelmente com ladrões. Que vergonha e tristeza, camarada, o que estes corruptos estão fazendo com a nossa herança histórica.


Continuei com a tola esperança de que a necessidade da sobrevivência das nossas forças nos colocaria na correnteza das estratégias e táticas corretas, e os obrigaria a navegar no curso certo para formar um Exército Popular e vencermos. Estava enganado, a teimosia e a vaidade foram maiores.


A notícia não deixava margem de dúvidas à minha marginalização.
– Sabia que estava na ordem do dia, mas não de forma tão explícita, foi dada assim na bucha, sem nenhum comentário?
– Dessa forma, respondeu, e encerramos o assunto.


Tenho orgulho da dívida de gratidão com essa pessoa correta. Para exemplificar, fizemos uma semana de treinamento em vários tipos de ações necessária em uma guerrilha. 


Orientação, emboscada, fustigamento, armadilhas, etc. Havia rodízio no comando dessas ações, e o escalado quase sempre escolhia o Zebão para sub-comandante.


Foi o primeiro companheiro que conheci na Bacaba. Era fim da tarde quando chegou conduzindo duas mulas. Calmo, cumprimentou-me e se apresentou.
– Zebão.
– Como é que é?


Ele repetiu sorrindo sem dar explicações, e acrescentou que iria cortar umas canas para os animais.
– Você gosta deles? Perguntei quase afirmando, enquanto o ajudava.
– Odeio, respondeu com a calma peculiar. Rimos sem parar por uns bons momentos. 


Landinho se aproximou curioso. Como ele dava a uma galinha zarolha o milho que ela não conseguia bicar,  chamando-a carinhosamente por Tui...tui, repeti a pergunta feita a 


Zebão achando encontrar compreensão para aqueles úteis animais. Ele praguejou e xingou com mais veemência ainda, alertando-me para não confiar naqueles sonsos.
– Eles quase me mataram de raiva quando passei seis meses carregando material de Mato Grosso até Goiás. O sotaque do interior paulista se acentuou e nossas risadas aumentaram.

João Gualberto Calatroni, de família de ferroviários, contava histórias de luta em Cachoeiro de Itapemirim. Nas esquinas do universo ainda nos encontraremos. A existência acaba, no entanto, a vida é incriada sem princípio nem fim.
Até lá e que seu bom carma o proteja, com a boa sorte que mereces.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ola. Esses dias assisti um filme muito bom que falava sobre a forma autoritaria que agia em determinados casos o partido comunista da tchecoslovaquia... filme é do diretor Costa Gravas chamado "A Confissão"... no link
http://filmespoliticos.blogspot.com/2011/05/confissao-laveu-la-confessione.html


é q lendo a matéria lembrei-me...