domingo, 15 de janeiro de 2012

Jurandir – o mistério




João Carlos


A todo momento, a Tia regulava o tempo que levaríamos.
–  Vocês vão chegar à noite, são quatro horas de viagem, e o Paulo vai com o saco pesado.
A Beira era um lugar agradável. Nos dois dias anteriores provei pirarucu, jacaré, peixes miúdos, e me regalei no agradável bosque de bacuri, emoldurado com a beleza do Rio Araguaia.
Caminhamos uns cem metros margeando a cerca de arame farpado que protegia a propriedade.
– Esse é o histórico Caminho do Boi, existe há séculos.
E logo entramos no caminho de terra batida, construído pela passagem sucessiva de pés. Só dava para andar em fila indiana.
– Esse caminho é considerado estrada, e agora não falaremos, é a norma – explicou-me Zé Carlos. No entanto, ele, curioso com o que estava acontecendo na cidade, a todo momento, puxava conversa, corrigindo-se logo depois: – Vamos fazer silêncio.
Um grupo de quatis bem próximo fez uma algazarra. Após atravessarmos um córrego, tomamos café na casa de um morador, cruzamos a Transamazônica e chegamos à Bacaba.
Já conhecia Luís e Landinho, chefe do grupo. Sentado num canto estava o Jurandir. Não era baixo, mas franzino. Esboçou um sorriso com ar desanimado, seus pés estavam enrolados em panos.
–  Jurandir tem bicho-de-pé até à cintura e, às vezes, nas mãos.
Zé Carlos me explicava, enquanto tomávamos banho no igarapé, aproveitando o resto da luz do dia. A situação de Jurandir era a única. Por sua causa não havia rodízio na cozinha, somente ele cozinhava. Comemos arroz com carne de paca e jogamos conversa fora, à luz de lampião, fumando cigarros dos maços que trouxemos da civilização.
De manhã, café com bolo de milho. Zé Carlos saiu com Landinho, e eu segui para a roça com o Luís. No fim da tarde comecei a tirar os bichos- de-pé do rapaz, que ficava repetindo: – eles voltam –, compatível com seu estado de ânimo.
 Depois de mais ou menos um mês, a notícia de que teríamos um treinamento me animou. Metade do destacamento treinaria durante uma semana, depois a outra metade.
Quando Beto estava, tirava os bichos-de-pé com toda calma e eficiência. Ele queria o Jurandir pronto para as tarefas ou qualquer surpresa. E se tivéssemos de nos retirar? Antes de o Beto seguir para o treinamento, fizemos-lhe, juntos, uma boa limpeza, mas ainda ficaram muitos.
Fiquei na Bacaba, com o Jurandir, na primeira semana.
Ainda estava amanhecendo quando acordei. A rede do Jurandir, vazia. Como ele nunca se afastava da cabana, fui ao igarapé e não o encontrei. Procurei-o na pocilga abandonada, tentando surpreendê-lo. Eu desconfiava que ali ele abastecia-se de seus bichos, e nada.
Como a metade do destacamento estava em treinamento, corri para a Beira, levando apenas meia hora. Landinho, que estava mexendo no telhado da casa, desceu espantado, pela minha presença desavisada.
– O Jurandir desapareceu.
– Volta agora para a Bacaba.
Na manhã seguinte, chegam Zé Carlos e Beto de caras amarradas e preocupadas.
– Como foi? Não podia ter acontecido!
E todas as especulações possíveis foram colocadas.
– Como você deixou ele fugir?
– Não sabia que ele era prisioneiro – respondi.
Fiquei vigiando a cabana. Nos dias seguintes, o movimento era de retirada, catamos as galinhas, para o Zebão levar. Mais alguns dias, passaram o Mário, a Tia, a Regina,  Zebão e Landinho.
Regina estava muito debilitada. Ela estava para sair da área. Era de cortar o coração vê-la dormir no aceiro da roça. Em nossas respectivas redes, ficamos de mãos dadas. Dias depois, Zezinho armeiro aparece montado numa mula, de chapéu e cartucheira. Tinha quase certeza que era ele, pela descrição feita pelo Landinho que muito o admirava, como artesão e amigo.
Deixei-o passar e o surpreendi com a espingarda 32 engatilhada e o revolver na mão.
Ele riu e apeou.
– Eu sou o Zezinho.
– Quem é que tu conheces daqui?
Sem perder o humor, disse os nomes de Landinho e Beto.
– Quem fez o telhado de tronco de Bacaba dessa casa fui eu também.
Tive certeza de ser ele mesmo.
Ficamos conversando por umas duas horas. De repente, com displicência, ele disse:  – Você tem que ir para a Beira.
Dias depois, segui para o Peazão  com três animais carregados de arame farpado, e outros variados teréns.
Nesses quarenta anos, Jurandir ou seus bichos-de-pé nunca foram comentados pelo partido ou pelo histórico da guerrilha.
- Quem é Jurandir?

Um comentário:

Anônimo disse...

Intrigante por demais. Às revelações são contraditórias, mas ótimo trabalho deste Blog.