domingo, 27 de maio de 2012

ASCO



Myrian Luiz Alves e João Carlos Campos Wisnesky


Aos guerrilheiros Lucia Maria de Souza (Sonia) e
 Libero Giancarlo Castiglia (Joca), in memoriam

(Liubliu – Amo, de Wladmir Maiakovski)

“(...)  Depois
atai-me a um poste
fuzilai-me!
Por causa disso
Haverei de mudar? (...)”

(Guerra e Paz – Maiakovski. Tradução: E.Carrera Guerra, 1956)


Desde a confirmação dos sete indicados pela presidente Dilma Rousseff à Comissão da Verdade, ou, desde sua instalação, somente agora os autores deste blogue decidiram tecer sua opinião, ou comentários. Optaram por observar as análises e as polêmicas publicadas nos mais variados meios de comunicação. O resultado dessa leitura é estarrecedor! E, também, sugestivo!

Quantas opiniões vieram à tona para apontar que a Comissão deve fazer isso ou aquilo, que esse ou aquele não deveria integrar o seleto grupo, como se pode observar na entrevista da representante do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, em entrevista à Carta Maior.
 
Haverá um dia em que todo o cinismo desses chamados representantes de "direitos humanos" será finalmente revelado. Por ora, nossa obrigação é a de apenas lembrar-vos, amigos leitores, que essas pessoas calaram-se diante da revelação de corpos de combatentes em armários da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. Algumas foram, inclusive, responsáveis pelo "arquivamento.

Ao ser um dos corpos identificado, 13 anos após sua exumação por um grupo forense argentino, sob a tutela de tal comissão, essas pessoas também não fizeram autocrítica. Apoiaram-se na absurda desculpa de que uma “revolução mitocondrial” favorecera a identificação de um homem com quase 1.90m de altura, problemas na mastoide e 21 dentes (sete teriam ficado na terra), além de materiais, como restos de cipó, com ele encontrados. Não permitiram a legistas ou laboratório brasileiros a análise dos restos mortais.

Não demonstraram nenhuma comiseração por sua mãe, nonagenária, ter ficado mais de uma década sem poder sepultar dignamente seu filho, morto no enfrentamento a paraquedistas e em defesa de quatro camaradas, no final de maio ou nos primeiros dias de junho de 1972 (provavelmente no dia 2 de junho). Bergson Gurjão Farias, Chefe do simbólico grupo chamado Esperancinha não foi assassinado. Morreu em combate.A revelação de mais uma identificação de guerrilheiro do Araguaia, enterrado em cemitério público, e retirado em 1996 com apoio governamental, poderia, afinal, prejudicar a ação movida na Corte Interamericana contra o Brasil. 

Isso, em nosso entender, além de nos envergonhar enquanto nação demonstra o mau-caratismo que tomou conta de muitas organizações no país, e, também, das instituições. Nem o fascismo ou o nazismo teria sido tão criativo.

Omitir cadáveres dentro do aparelho de estado para usufruir de status político e financeiro por meio dos direitos humanos não provoca asco? Apoiado pela Comissão Europeia, nenhuma ação política para sabermos melhor o que se passou durante o regime militar satisfaz esse grupo e outro assemelhado, do qual sempre falamos, ambos com menos de meia dúzia de porta-vozes. O que eles querem?

Os jornalistas que os entrevistam não percebem o cinismo - seus desentendimentos internos quando lhes convêm, e sua união quando o tema é indenizações ou nomeações à vista?

Há mais restos mortais retirados da região do Araguaia em Brasília, que, identificados, auxiliariam a localizar outros que ainda lá permanecem. Guerrilheiros podem ter sido mortos na Capital, pois para lá foram levados com vida, como revelou um sargento da Aeronáutica na Comissão Externa da Câmara dos Deputados em 1992 (texto da Agência Estado abaixo).

Queremos saber dos responsáveis por essas prisões o que ocorreu. É preciso ouvi-los e cruzar suas informações com os milhares de documentos já disponíveis e outros que possam ser revelados pela Comissão da Verdade.

O que temem os vampiros de nossa história? De também eles serem cobrados por suas omissões? De seus financiamentos recebidos do exterior, como a Fundação Ford, para publicarem livros bem grossos – são mais caros, claro – com historinhas sempre por eles próprios contadas?

Não querem, também, que saibamos de erros ou equívocos de seus líderes? Ou por que entendem que os contrários às suas opiniões devam ser justiçados, retirados da vida pública por conta de suas queimações?

Queremos ouvir o Brasil tal como ele foi forjado, analisado sob o contexto mundial do período e de seu processo de redemocratização. Sem medos ou vergonha.

Se a história da civilização fosse tratada como desejam os vampiros de nossa história, assassinos ou os que (re)escondem corpos de suas verdadeiras famílias, não conheceríamos sequer o que se passou em Troia ou em Waterloo.

Queremos, além disso, saber as divergências políticas e de ação entre os grupos que foram à luta armada, seus reais objetivos, da mesma forma que já se sabe o papel do Brasil no apoio a outros golpes militares, como o do Chile.

E, mais a fundo, também solicitamos à Comissão da Verdade uma análise sobre o dossiê elaborado pela senhora Maria de Lourdes Salazar e Oliveira à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, em 22 de janeiro de 1996, para saber dos restos mortais de seu filho, Ciro Flávio Salazar e Oliveira, tombado em 30 de setembro de 1972, com seus companheiros Manuel José Nurchis e João Carlos Haas Sobrinho.

Aliás, queremos saber o que se passou no Instituto de Criminalística do Distrito Federal (ICDF) e na Polícia Federal de Brasília em 19 de novembro de 2003, dia em que restos mortais e coletas de sangue foram estupidamente retirados para serem arquivados na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. Junto ao material coletado da família Haas, no ICDF, havia um osso da perna de Iuri Xavier Pereira, jamais desaparecido. Por que estava ali?

Um bom caminho para saber os procedimentos sob a responsabilidade de leigos autointitulados especialistas em ”direitos humanos” é ouvir, por exemplo,  legistas e antropólogos de Brasília, da Argentina e da Unicamp. E conhecer, também, detalhadamente seus relatórios e saber, ainda, “resultados” divulgados pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos a partir de análises jamais apresentadas.

“(...) Em nossas veias/corre um sangue rubro/E não água morna .
Marchamos através/de um ladrar de balas/para que ao morrer
nos tornemos/navios/poemas/ou coisas maiores.
Gente como eu/Jamais deveria morrer.
Mas, já que existe um fim/quisera/ – É meu único desejo –/encontrar a morte/
como a encontrou /o camarada Nette.”

(Maiakovski – Ao Camarada Teodoro Nette – Homem e Navio, 1926)


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Reportagem da Agência Estado, de 9 de dezembro de 1992, relativa a depoimento de ex-sargento da Aeronáutica à Câmara dos Deputados

"Diário do Passado
Quarta-feira, 9 de dezembro de 1992
Sargento depõe sobre o Araguaia na CPI dos desaparecidos políticos
Brasília, 09 (AE) – Os deputados Roberto Valadão (PMDB-ES) e Cidinha Campos (PDT-RJ) tomaram ontem, em nome da CPI dos Desaparecidos Políticos, o depoimento do sargento reformado da Aeronáutica, Napoleão Sabino de Oliveira. Ele diz ter transportado guerrilheiros presos na guerrilha do Araguaia.
Seu relato durou quase uma hora. Diante do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcelo Lavenere, o sargento contou que, de 1974 a 1975, trabalhou no transporte de alimentos e pessoas entre Brasília e Xambioá, no Araguaia.
Em janeiro de 1975 ele transportou oito guerrilheiros encapuzados – cinco homens e três mulheres – de Xambioá para Brasília. No percurso, um deles perguntou se ia morrer. “Nesse avião, não”, teria respondido o sargento.
Ele contou também que muitos guerrilheiros assassinados foram enterrados num local situado a 1.500 quilômetros (sic) da pista de pouso de Xambioá, mas ressalvou não ter testemunhado nenhum desses crimes. O sargento responsabilizou o Exército e a Aeronáutica por essas mortes; e as polícias militares do Amazonas e do Pará, como sendo as forças deslocadas na época para o Araguaia."
(Trecho de relatório de Myrian Luiz Alves ao Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), março de 2011)

terça-feira, 8 de maio de 2012

Dr. Juca, em quadrinhos, e a importância do registro histórico



"Nem todos os anos que passam se vivem: 
uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los."
(Padre Antônio Vieira)

Myrian Luiz Alves



Manobras militares da Operação Papagaio (setembro-outubro de 1972) em Caiano, em área da propriedade do economista gaúcho Paulo Mendes Rodrigues, primeiro comandante do Dst C da guerrilha. Juca viveu certo tempo na "fazenda", e ali manteve uma farmacinha. O senhor Cícero da Bella lembra-se do jeito de Juca fazer café, aproveitando água quente para escoar copos e xícaras. O Grupo de Trabalho Tocantins gravou relevantes depoimentos a respeito do doutor Juca. Reunidas todas as informações até aqui, o médico nascido há 71 anos em São Leopoldo, presidente da União Gaúcha dos Estudantes em 1964, ano em que se formou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, contribui para que essa página da história integre o ensino de história do país desde o fundamental.  Caiano, às margens do Rio Araguaia, localiza-se em São Geraldo, no sudeste do Pará. Guarda um dos mais fortes e simbólicos registros da memória regional. A foto integra o acervo do ex-soldado Raimundo Pereira de Melo, fundador e dirigente da Associação dos ex-Combatentes da Guerrilha do Araguaia. Nas manobras militares,  a base de Caiano era composta, em sua maioria, por soldados vindos de Minas Gerais.

Legal a proposta do blog criado por Taís Morais, jornalista, escritora, pesquisadora da Guerrilha do Araguaia e da história recente do Brasil. Ótima contribuição ao acompanhamento do vaivém da atuante Comissão da Verdade, embora até o momento a presidente da República Dilma Rousseff não tenha nomeado seus integrantes. 

Surpresa, também, conhecer, pelo blog, o bonito trabalho postado no Youtube, o dr. Juca (João Carlos Haas Sobrinho) em quadrinhos.

Como sabemos, infelizmente, que a hipocrisia atrasa o contar das histórias, ficamos contentes quando conhecemos novos trabalhos relacionados ao tema. Pois sabemos, por outro lado, que podemos confiar nos condutores do (re) contar. Juca é um deles. O que se passa, né, Taís?

Dr. João Carlos, no Vão do Marco, entre Porto Franco e São João do Paraíso (MA), com o Frei Ângelo e moradores. Abaixo, discurso de Fortunato Pereira Neto, Poeta do Sertão, declamado na despedida do primeiro médico cirurgião de Porto Franco, em meio a 3 mil pessoas, tendo a à frente o então bispo de Tocantinópolis e autoridades locais. Manifestação para o convite a que permanecesse na cidade. Deve-se o arquivo da memória do sul maranhense, em especial, ao secretário de Cultura de Porto Franco, Vaner Marinho e moradores que guardaram lembranças do jovem médico, morto aos 31 anos durante a Operação Papagaio, 
ação das três forças militares, na qual tombaram oito guerrilheiros. 


Da Memória Sul Maranhense

"Discurso do poeta imortal, Fortunato Moreira Neto, quando do histórico ato público da população de Porto Franco e região, na tentativa de evitar a partida do Dr. João Carlos.

Ilustres Ouvintes:
Nobres concidadãos aqui presentes:

Na reunião popular de ontem, fui surpreendido para fazer uso da palavra. Então, falei, não porque me sentisse em plenas condições de fazê-lo, mas, circunstancialmente, para dar um simples haver num grande débito de gratidão. Creio, porém, que o crédito mais aumentou a importância do débito, o qual sempre há de ficar acima de todos os pagamentos! E aqui me encontro por causa de tal dívida, por cujo motivo me cumpre dirigir-vos, em inculta linguagem, expressões e pensamentos, em referência aos elevados e honrosos objetivos desta impotente e cordial manifestação de apreço, e condignamente feita, agora, ao Dr. João Carlos, eminente médico e super-homem que, a serviço do bem, há tempos se encontra entre nós, como nobre benfeitor da humanidade.
Ora, sabemos que a arte de falar bem – a mais difícil de todas as artes , é sublime privilégio de raros homens chamados gênios, entre os quais posso citar:  Demóstenes, na Grécia; Cícero, na Itália;  Dr. Joaquim Nabuco de Araújo; Dr. Rui Barbosa, o Padre Antonio Vieira (o Crisóstomo); Monte Alverne e mais outros do Brasil; e todos de renome sobejamente conhecido da História da Civilização ou na História Universal.
Quisera, meus amigos, ter o divino dom da Oratória, e para vos dar uma inconcussa prova de leal amizade e de consideração, neste instante, e sobre o assunto em foco, e que ora tanto nos empolga e prende a atenção, e por justas  razões.
Um simples palpite de minha parte quero juntar às vossas mais queridas aspirações, e que deram ensejo a esta segunda reunião coletiva e seleta, e que significa a continuação dos nossos melhores anseios pelo completo bem estar e felicidade do bom e heróico Povo da nossa querida Cidade!
Eis o meu singelo modo de pensar a respeito da crescente e prosperidade que desejamos a Porto Franco e à nossa heróica gente e do sertão.
Primeiro que tudo, devemos apelar para a Suprema Vontade da Providencia Divina, que trouxe o Dr. João Carlos ao nosso modesto convívio, e para que tão douto e generoso médico prossiga conosco, como preciosa dádiva do Céu a todos nós, e ante as nossas dores e sofrimento; segundo, continuarmos constantes no apelo que lhe estamos fazendo e para que fique conosco, como bem lhe aprouver, ou for conveniente a seus próprios interesses, e de modo que Deus sempre abençoe a sua honrosa estadia em nosso meio-ambiente.
Creio ser de nossa absoluta necessidade termos aqui uma importante Junta Médica, e que lute, abnegadamente e incessantemente, no sentido de salvar-nos das doenças, e sob o patriótico amparo da Bandeira do Brasil, heroicamente e hasteada ou desfraldada entre os suaves e harmoniosos acordes do Hino Nacional a nosso favor.
Da Junta Médica em pálida e obscura sugestão de um rude Mestre-Escola do Sertão, o Dr. João Carlos poderá ser o erudito Diretor ou Dirigente, tendo o necessário tempo para acompanhar a evolução da Medicina Moderna ou da Ciência Médica atualizada; e para inteira felicidade dos pacatos habitantes de Porto Franco, e de quaisquer outros lugares que procurarem os relevantes serviços do seu conceituado Consultório Médico bem esse que nos seja logo e inadiavelmente dado pela atual Administração do País, em nome de Deus, e para maior Glória de nossa Pátria estremecida.E, assim, Dr. João Carlos, mais um mínimo haver no insolvível débito de gratidão que tenho convosco.
                            Ide e voltai imitando Pasteur!
                            Ide e voltai imitando Pasteur!
                            E ponto final, por enquanto.

Porto Franco, 1º de Novembro de 1968
Fortunato Moreira Neto  -  Poeta do Sertão."

O armário (guarda-roupa) deixado por João Carlos a dona Dejacyr, sua amiga e auxiliar. Com ele, aprendeu a fazer carne de porco com polenta, um dos pratos preferidos do doutor. 
Dona Dejacyr registrou a esta pesquisa:"O doutor João Carlos podia não acreditar em Deus, mas Deus acreditava nele". Entre armários e situações equivocadas, a condução do contar da história polemiza 
e revela caráteres, caminhos e realismo político.