sexta-feira, 9 de março de 2012

Guerrilha do Araguaia e as mulheres do Brasil - 2

Myrian Luiz Alves


Ficha de Walkíria Afonso Costa no Dops (Arquivo do Dops, copiado pela família)

Sentada nas escadas de mármore da casa em que moro em Paquetá, agora à noite, curtindo os gatinhos que brincam na calçada e na areia da rua, em liberdade, fiquei observando a de Pedro Bruno, um bom cidadão brasileiro que nasceu e viveu na ilha (já citado neste blogue).

Por alguns instantes vêm à lembrança momentos que vi da história recente do Brasil.

Entre eles, a redemocratização, campanhas nacionais, CPIs. Então, sem pieguices, agradeço mentalmente - ou espiritualmente - aos meninos e, em especial, às meninas do Araguaia.

Quase não falam delas, em seu conjunto. Há uma porta-voz que não permite a socialização do que representam aquelas mulheres em um território de tamanho razoável do país, o sudeste do Pará. Algumas por terem ficado mais tempo, ganharam fama de pessoas legais e guerreiras.

Ao certo, nove mulheres permaneceram até 1974. Uma delas, Cristina (Jana Moroni Barroso) teria sido morta com um tiro desferido por um militar despreparado, queriam-na viva, para executá-las após a prisão, como ocorreu com as outras oito.

Do destacamento comandado por Osvaldo, o B,  foram mulheres, em sua maioria, as últimas sobreviventes na região, com exceção da possibilidade de José Maurílio Patrício ter conseguido escapar até outubro, segundo a Marinha, que não afirma o dia.

Valkíria, no álbum militar – outubro 1972

46 – WALQUIRIA AFONSO COSTA  “WALQUIRIA”  (Dst B – Gp CASTANHAL)

A última pessoa do contingente guerrilheiro a ser delatada, presa e fuzilada foi Walkíria Afonso Costa, mineira e estudante de pedagogia. Façamos a ressalva: Walk atirava bem desde os oito anos, em caçadas com o pai, nas cercanias de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte. Acostumou-se, talvez, mais à vida da mata do que outros guerrilheiros de vida completamente urbana, ela cresceu às margens do rio Paraopeba, curiosamente, próximas às extrações da Vale do Rio Doce. 

A empresa detém o monopólio de exploração em Carajás, área da guerrilha, cujo projeto de exploração foi decidido em julho de 1974, mês em que teria sido executada a popular guerrilheira Dina, geóloga e até pouco tempo antes, funcionária do Ministério das Minas e Energia.


"Verás que um filho teu não foge à luta"

Levada aos fundos da base militar de Xambioá, oficiais, ladeados em meia lua, teriam alvejado Walkíria com três tiros. Há um corpo em Brasília desde 2001, com a mesma altura da guerrilheira, 1.67m, retirado do cemitério de Xambioá. Até hoje não há notícias de tentativas de identificação.

Antes de Walkíria, tocadora de acordeon e apaixonada por músicas de Geraldo Vandré, Telma Regina,  Dinaelza Santana, Luzia Garlippe, Sueli Yomiko, Áurea Elisa, Dinalva Conceição (Dina) e  Maria Célia foram aprisionadas sob o olhar de civis e militares. Não tiveram, como também aconteceu a vários de seus camaradas, o direito à defesa.


 
"Mensagem" de Walkíria a Geraldo Vandré

A história precisa saber de quem partiu a ordem nazista e quem foram seus executores. Não há nenhum dilema nisso. Barbárie existem todos os dias, em meio à cidadania, em conflitos políticos e no seio de todos os povos. A maneira como ocorre o desdobrar dos fatos é o problema. Há uma locupletação para que se proteja algo dos dois lados, só pode ser.

Há sete anos, dediquei algumas linhas às mulheres do Brasil e da guerrilha. Hoje, em nossos dias, quero falar das que sobreviveram, Elza, Tereza, Lucia Regina, Regilena, Luzia. Não falarei de Criméia porque não merece, ao meu ver, ser colocada em meio a pessoas legais. Sou da Mooca, e lá, sabe Deus as razões, não temos paciência com mentirosos, muito menos com sacanas, no sentido pejorativo da palavra e não a gíria, como gostamos de usar.

Não conheço pessoalmente apenas a Tereza. Sou mãe de quatro filhos e tenho-lhe o maior respeito. Por ela, um camarada também sobreviveu. Lucia, Regilena e Luzia são amigas eternas, exemplos de caráter, carinho, amor e solidariedade. Que privilégio conhecê-las, e por elas, estendo meu sentimento às que ficaram. Elza, conheci como dirigente comunista, dura. Pude visitá-la em seus últimos meses, em um sítio à beira d'água após a montanha Dedo de Deus, no Rio de Janeiro.

Trouxe de sua casa orquídeas e uma caixinha com cartas da prisão. Fomos a ela saber um pouco do Joca. Fui acompanhada de um dirigente do PCdoB do Rio, o sobrinho de Joca, Wladmir, e o cunhado, Antonio, calabrês como o guerrilheiro que teria passado, segundo Elza, por paraibano.

Certa vez, dei carona a Elza e a dona Amélia, mãe de Chico Buarque. Foi após um ato de Direitos Humanos na Câmara de São Paulo. Elza desceu primeiro, na Rua Rui Barbosa. Seguindo seus esquemas de segurança, exigiu descer do outro lado da rua. Dona Amélia, que, no caminho entre a Rui Barbosa e a Higienópolis, enalteceu a comunista e mostrou-se emocionada em tê-la conhecido, queria que a deixasse na frente do prédio em que morava seu filho mais velho, Sérgio. Discordei e disse-lhe que a deixaria na portaria, em frente ao elevador, como o combinado com Ana, sua filha, hoje ministra da Cultura. Ela mostrou-se aborrecida, mas fiz o que prometera e fui embora. Ali, lembro-me de ter refletido sobre a importância de influências de pessoas fortes, combativas, não servis.

E não importam a classe, o meio social, a família, o diploma ou a riqueza. As influências de uma nação atingem a todos, desde que a ideia, ou o comportamento, o gesto, valha a pena.

É o que acontece, por exemplo, com Walkíria e Idalisio Aranha, seu companheiro até 1972. Tornaram-se uma grande epopeia. As localidades por onde passaram no Araguaia também colaboram com o cenário: Perdidos, Andorinhas, Gameleira, Xambioá, entre outras. Este blogue já publicou texto do sargento Califa, da FAB, sobre o Idalisio. Embora não tenha inserido no texto, o ex-militar conta que o guerrilheiro, fustigado por um helicóptero nos Perdidos, área de São Geraldo, enfrentou um grupo de paraquedistas. Na lenda, sabe-se que o general Bandeira teria afirmado que o rapaz comportara-se como um verdadeiro combatente.

A presidente Dilma Rousseff militou no mesmo período do casal estudante, como ela, da Universidade Federal de Minas Gerais. A morte de Idalisio nunca foi omitida, ao contrário, foi enaltecida, como mostra a história. Conclui-se que tenha sido enterrado em Xambioá. 

Era 1972, e sua morte consta, como a de outros, em relatórios militares. A morte de Walkíria, em 25 de outubro de 1974, segundo a Marinha, foi contada pelo ex-soldado Adailton Bezerra ao então presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, João Luiz Duboc Pinaud, praticamente expulso da presidência pelo grupo de direitos humanos que dirige a comissão desde 1996. Como ele pretendia realizar um bom trabalho, teve a dignidade de dirigir uma carta ao presidente Lula, que o nomeara, renunciando ao cargo, deixando aquele ambiente fraticida.

Os bastidores são exaustivos. E essa turma é profissional da hipocrisia e mediocridade. Às vezes, essa história cansa. Mas logo, a curiosidade se aguça e a vontade é de saber mais. O que se esconde em meio aos cerca de 140 mortos do período militar no Brasil, sendo mais de sessenta, incluindo moradores, no Araguaia? O que esses corpos podem contar?

Voltando às meninas, a delicadeza de Lucia Regina pode ser sentida no detalhe de um registro de sua memória. Ao retornar de um banho, no alvorecer no rio Araguaia, ela se deparou com uma teia cobrindo parte de um arbusto. A cena lhe era muito bonita. A luz que irradiava nos fios trouxe-lhe a razão do tempo. - Isso é efêmero -, pensou.

                             

Walkíria, em caçada, e suas notas escolares 

O tempo dos seres é efêmero. Suas histórias duram um pouco mais, servem à evolução do pensamento das gerações, da humanidade.

Então, por que cargas d'água os bichos homens (masculinos e femininos) passam a tal efemeridade, esse segundo no cosmo, sacaneando uns aos outros. Na história, as meninas que abriram os anos 70 de fuzis e 38 às mãos, ultrapassaram o tempo de sobrevivência em relação aos gigantes masculinos. Se é feio matar um homem preso, naturalmente, para a civilização, matar uma mulher é mais ainda. Num contingente de 59, 23 pessoas foram presas e executadas. O que há de vitorioso nisso? Repetindo, nove eram mulheres, apenas uma foi morta antes da prisão, pelas costas, ao tentar correr.

Antes, em 1973, Lucia Maria (Sonia) foi morta, e, em 1972, Helenira (Fátima) e Maria Lucia (Maria). São doze as guerrilheiras que por lá se eternizaram, entre 1972 e 1974.

A promotoria militar pode e deve dar um basta ao cinismo e a impunidade - principalmente moral - que protegem criminosos. O ambiente militar não pode jamais tutelar bandidos, com ou sem farda. Ordem errada ou criminosa não se cumpre. E a presidente tem a oportunidade de fazer um bom trabalho no resgate dessas e de outras histórias, não permitindo, pelo menos, a continuidade do vilipêndio praticado por meia dúzia de sacanas que tentam dirigir a história recente do Brasil.

Podíamos começar com esclarecimentos coerentes sobre o crânio encontrado durante as exumações de 2001 em Xambioá. Como outros restos mortais, estão sob responsabilidade da Secretaria de Direitos Humanos, lotada no Ministério da Justiça do Brasil. Nenhum dos participantes daqueles trabalhos em Xambioá era otário, muito menos os cientistas. O Brasil tem medo de saber suas dores? Não há como crescer sem sabê-las.

Deixem os militares e civis octogenários ou septuagenários contarem os fatos, a história deles e a dos militantes armados é o que importa. Como falar de punição sem a narrativa de quem participou? Presta atenção, Brasil. "Mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim" (Cazuza).

Talvez, ao nos sabermos, a gente melhora. Três tiros na professorinha, e só com o terceiro ela tombou. É a própria educação do Brasil, não é não, Walk? Um viva a vocês todas, meninas!

3 comentários:

Anônimo disse...

Heroína dos tempos modernos.
Mara

Fatima Marques disse...

Walquiria e suas companheiras de luta representam ou simbolizam a fibra e a coragem, exemplo de mulheres!

17/03/2012

Anônimo disse...

Já tem Osvaldão de Passa Quatro, Idalício era de que cidade mineira?
Prof